segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Vai se lembrar sempre?

Ele: eu te amo! 
Vai lembrar-se sempre disso? - disse, olhando dentro de seus olhos doces e castanhos escuros, como dois caramelos perfeitos daqueles que só encontramos nas melhores lojas de doces da Áustria.

Era tarde de domingo e ele em alguns minutos voltaria pra casa. Aproveitava esses minutos finais, ao lado de sua amada, abraçado a ela com seu corpo e alma, fixando seus olhos castanhos em seus lábios doces e macios nos quais amava se perder em demorados e apaixonados beijos repletos de amor.

Era quase impossível evitar que seus olhos se tornassem úmidos na iminência de mais uma semana longe de quem jamais queria distanciar-se. Ele afagava seus cabelos enquanto ela repousava em seu peito. Sua respiração cortava em crescentes apneias e o peito sofria pontadas, como uma angina, causada pelo inescrupuloso relógio que não lhe poupava um minuto sequer.

Ele levantou-se, estendeu-lhe a mão e disse - venha comigo até a porta - passando antes pela cozinha para beber água e umedecer a garganta que,  seca, queria ordenar ao tempo que parasse ali mesmo.

Era muito difícil ultrapassar aquela porta e deixá-la. Caminhou lentamente até o portão, destrancou o cadeado mas voltou duas outras vezes para contemplá-la, abraçá-la e beijá-la antes de sair definitivamente caminhando com os olhos fixos na mulher amada até perdê-la de vista. 

Aquele ônibus partia pontualmente e a empresa de transportes orgulhava-se disso. Algumas centenas de quilômetros a percorrer até seu destino naquelas estradas não muito boas devido aos constantes temporais que outubro trazia consigo.

Embarcaram poucas pessoas e ele podia aproveitar o silêncio e a solidão para mergulhar em suas lembranças.

Ele era um romântico incorrigível que adorava deixar um bilhete de amor em algum lugar inusitado para que somente fosse encontrado depois que ele partisse. Adorava lhe surpreender e agradá-la com mimos, poesias, flores, enfim, tudo que estivesse ao alcance de sua imaginação e que pudesse fazê-la sorrir e sentir-se feliz. Amava cozinhar pra ela e vasculhava centenas de receitas para aprender e preparar somente pra ela . É fato que algumas não saíam como planejadas e alguns simples chips de abobrinhas viravam carvão. Mas ele recomeçava. Sim, defeitos ele tinha,  claro,  como qualquer pessoa,  mas não havia nenhum que ele não estivesse disposto a corrigir para que pudessem viver eternamente aquele grande amor. Não era tanto por ele, mas sim por ela, que era um modelo de virtudes, qualidades e ele confiava plenamente em seu amor e seu caráter.

Enquanto a verdejante paisagem desfilava pela janela de um lado, o  entardecer dourava o horizonte no lado oposto. Nuvens carregadas anunciavam fortes chuvas e sombreavam aquelas planícies de abundante clorofila e raras árvores nativas do cerrado.

As primeiras gotas de chuva deslizavam pelo vidro da janela assemelhando-se às lágrimas da contundente saudade que dilacerava-lhe o peito. As copas das árvores dançavam segundo o vento orquestrava e do ocaso dourado, restava agora apenas nuvens alaranjadas e sombrias.

Sim, eles tinham planos, inúmeros, como todo casal de namorados e ele recordava cada um deles, ensaiando um sorriso em seus lábios que, até então, fora dominado pela melancolia da distância de sua amada. Mas se dependesse somente dele, não restaria nenhum por realizar e ele a faria sentir-se a mulher mais amada que pudesse existir. Sim, porque felicidade é um estado e não uma condição e cada um depende somente de si só para sentir-se feliz mas ele podia adicionar momentos felizes à vida dela e assim, ficaria feliz também por sua vez pois sua felicidade dependia de vê-la feliz.

Sim, ele pretendia casar-se, ter filhos, aguardar ao lado dela que o Criador lhe ceifasse a vida segurando sua mão e se perdendo, já bem velhinho, naqueles olhos castanhos de caramelos.

A chuva se intensificou e da paisagem, agora, só se destacavam silhuetas que passavam céleres pela janela.

Uma curva fechada, o asfalto molhado, um barulho intenso de metal retorcendo, vidros estilhaçando, um impacto forte em sua cabeça. O gosto amargo do sangue em sua boca, gritos de alguns passageiros, bagagens voando pelo corredor e ele não conseguia distinguir onde estava o céu e onde estava a terra naqueles constantes giros que, como marionette, arremessava  seu corpo de um lado a outro até que finalmente cessou e o silêncio invadiu aquele asfalto molhado que lhe servia agora de travesseiro.

Ele mal conseguia levantar o braço mas com muito esforço conseguiu retirar o celular do bolso e trazê-lo com dificuldade até diante de seus olhos, abriu a galeria de imagens e contemplou  com uma tentativa de sorriso nos lábios e dentes carmim, as fotos de seus filhos, de seus pais, dos filhos dela e finalmente as fotos que havia tirado junto a ela, pois ele adorava fotografá-los para ficar contemplando todas as noites até que o sono chegasse e no dia seguinte acordava e começava seu dia da mesma maneira decorando aquelas fotos.

Ele já não conseguia mais manter seus olhos abertos. Sentia frio e seu corpo tremia como se estivesse sob dezena de graus negativos.

Lembrou-se da última noite, dos últimos abraços, dos últimos beijos e do quanto a amava.

E suspirou pela última vez.