sexta-feira, 8 de dezembro de 2017
ACORDA DANIEL!
Acorda Daniel!
Aumente para 250 Joules – gritou o médico, manipulando o desfibrilador
– e afastem-se.
Olhos castanhos, reluzentes, cabelos lisos e negros, sorriso cativante,
educado e muito amado pelos pais, Daniel teve uma infância muito pobre,
faltava-lhe até o básico, quiçá diversão.
Daniel nunca frequentou a escola, pois, desde cedo, foi auxiliar o pai,
catador de papel nas ruas da cidade baixa de Salvador. Acordavam às cinco da
manhã e só retornavam no início da noite. Comia pão com mortadela
comprados com as gorjetas que recebia ou algum alimento que ganhava.
- Moço! O “sinhô” pode me “dá” uma ajuda pra “comprá” comida?
Qualquer tanto que o “sinhô pudé” já ajuda.
Daniel cresceu na companhia de uma irmã, Mixele Faifer e Bruci Uilis
(assim registrados pelo pai). Pedro e Joana, pais de Daniel, vieram do interior
do Pernambuco em busca de oportunidades na cidade de Salvador, Bahia.
Semianalfabetos, sonhavam em encontrar um trabalho que permitisse criar os
filhos dignamente. Joana ganhava uns trocados lavand o roupas e
esporadicamente fazia faxinas, embora bastante raras pois não tinha
referências. Com muito suor, conseguiam comprar sal, macarrão e extrato de
tomate para as refeições diárias preparadas num fogareiro improvisado com
tijolos, gravetos e utensílios usados que receberam por caridade de alguém.
Moravam em um barraco feito de papelão e tábuas, dispensadas pela
construção civil, em um aterro de Salvador, próximo a um lixão.
Curioso e investigativo, Daniel queria ser jornalista. Assistia aos
noticiários na TV, em um dos bares próximos, e dizia ao seu pai que um dia
seria igual ao Cid Moreira.
O monitor de sinais vitais daquela unidade de terapia intensiva,
intercalava sons contínuos com “bips” e no visor uma linha sentenciava Daniel
enquanto os relevos verticais o absolviam.
- Aumente para 300 Joules! Não vamos perdê-lo! – bradava o médico
enquanto sua equipe ministrava concomitantemente, medicamentos via
endovenosa. A cada descarga, a equipe ansiosa e dedicada, fixava os olhos no
monitor esperando pela reação de Daniel.
Os pais de Daniel, religiosos, embora não praticantes, sempre fizeram
questão de dar a seus filhos educação Cristã, seja em casa ou nos templos
que frequentavam assim como exaltavam as virtudes e moral elevada
demonstrando, também, através dos bons exemplos.
Daniel queria estudar, tinha fome de sabedoria. Guardava todos os livros
que encontrava nos lixos e quando podia, olhava as gravuras, embora não
soubesse ler. Sua mãe o levava com ela, nas faxinas, quando Daniel ficava
doente e em um desses dias, levou-o à casa da Sra. Heloísa, uma jovem viúva
de 28 anos, sem filhos, que sofrera um acidente no qual seu marido, coronel do
exército Brasileiro, veio a falecer, deixando uma generosa pensão. Heloísa
ficou com graves sequelas que dificultavam exercer sua profissão de
professora. Como a pensão era mais que suficiente para manter seu padrão de
vida, optou por abraçar trabalhos filantrópicos alfabetizando idosos e
participando de atividades sociais em seu bairro.
- Daniel, o que você quer ser quando crescer? – Perguntou Heloísa.
- Quero ser jornalista como o homem do noticiário na TV. Mas eu vou
dar só “notícia boa”, não quero dar “notícia ruim”.
Comovida com a situação daquela família e encantada com Daniel,
Heloísa contratou Joana e conseguiu matricular Daniel em uma das escolas na
qual era conselheira.
Daniel ia pra faculdade de Jornalismo pela manhã e à tarde, como
servente, auxiliava o pai que começara a trabalhar como pedreiro. Extrovertido
e divertido, logo fez muitas amizades e passou a frequentar festinhas
organizadas por alguns. Não demorou muito e Daniel começou a fumar, ingerir
bebidas alcóolicas, chegava em casa, agora um barracão alugado de dois
cômodos, frequentemente embriagado ou trazido inconsciente por seus
colegas de farra.
Daniel se converteu, de aluno exemplar, a desleixado e repetente. Seus
pais, inutilmente, se esforçavam em conscientizá-lo do caminho torto pelo qual
direcionava sua vida.
Sexta-feira chegou trazendo a expectativa daquela turma de colegas de
faculdade pois organizaram uma festa de arromba em comemoração ao final
do ano letivo. Contrataram um bufê e DJ, bebida farta e um salão de festas
com enorme jardim e piscina.
Daniel dançava animadamente e seu copo nunca permanecia vazio. Em
volta de sua mesa, inúmeras bitucas de cigarros formavam um amontoado
malcheiroso e as baforadas criavam uma espessa nuvem de fumaça ao seu
redor. Luzes coloridas, holofotes, globo refratário e estroboscópios
completavam a atmosfera festiva embalada por música eletrônica.
- Venha comigo Daniel, quero lhe mostrar uma coisa – disse Alberto, seu
colega de faculdade.
Eufórico, Daniel pulava e gesticulava, cantava, fumava e ingeria, de um
gole só, copos e mais copos de bebida, até que sua cabeça começou a girar e
sentou-se no sofá em um canto da sala. Do paraíso ao inferno, Daniel sentiu o
mundo desabar à sua volta. Seu estômago revirava com ânsias de vômito e
uma forte dor abdominal se instalava competindo com o gosto amargo em sua
boca e sentia-se em um carrossel que girava cada vez mais rápido. Trêmulo,
suas pernas não o obedeciam e não conseguiu ficar de pé após algumas
tentativas.
Socorro! – Implorava Daniel, num sussurro inaudível.
Olha só o Daniel – comentou um colega que o avistou ao passar pela
sala – O maluco está curtindo de montão.
Era pouco mais de 4:00 h. da manhã quando bateram à porta e Pedro foi
atender.
- O senhor é o pai de Daniel? – perguntou um jovem, com voz aflita.
- Sim! O que houve??
- Sou Fábio, colega do Daniel e ele não está passando bem. Estamos
numa festa da faculdade e ele está inconsciente.
- Você pode me levar até lá? – Indagou Pedro.
Uma lágrima rolou dos olhos de Pedro ao avistar Daniel estirado sobre a
poltrona, olhos esbugalhados, boca aberta e expelindo uma espuma
esbranquiçada pelo canto da boca. Seus colegas tentavam, em vão, reanimar
Daniel, que alheio a tudo aquilo, já não tinha mais forças para reagir por si só.
Pedro abraçou seu filho, tomou-o nos braços e apressou-se para levá-lo
até o hospital mais próximo que ficava a poucas quadras dali. Sua mãe
aguardava lá fora e não conteve o choro ao ver o filho naquela situação e
tampouco deixou de reparar suas narinas, esbranquiçadas por um pó fino, e
em alguns lugares, misturado ao sangue que escorria pelas suas narinas.
Aquela última descarga do desfibrilador quase tirou o tronco de Daniel
da maca. Os medicamentos, a massagem cardíaca, o apoio respiratório
mecânico, tudo parecia não surtir efeito nas tentativas incansáveis da equipe
médica, que de olhos fixos e brilhando de ansiedade, observavam os
batimentos cardíacos, pressão arterial, temperatura, respiração, oximetria e
outros indicadores que traduziam a situação do inerte Daniel.
- Ele voltou!! - Exclamou o médico, enquanto comemorava com sua
equipe o “bip” intermitente do monitor e o progressivo retorno dos indicadores
aos seus valores normais. – Conseguimos!
Daniel lentamente abriu os olhos. Não se recordava com detalhes do
acontecido, mas se lembrava de ter ingerido muito álcool e cheirado cocaína.
Lá fora, seus pais e irmãos aguardavam notícias.
Movendo os olhos lentamente, pelo ambiente, viu um quadro com a foto
de uma enfermeira que com o dedo indicador diante da boca, sugeria o gesto
de pedir “Silêncio” e logo abaixo, uma frase no mesmo quadro, dizia: “Vá e não
volte mais a pecar. Jesus”.
Eram quase 15:00 h., horário de visitas na UTI, que lhe fora informado
pela enfermeira. Chovia naquela tarde, com relâmpagos e trovoadas lá fora e
no coração de Daniel.
É SÃO JOÃO!
É
São João!
É junho
É São João
É fogo que arde na fogueira
e na alma
É quadrilha, quentão, pipoca
e amendoim
Faz frio
Lá fora, sem agasalho, dorme
João
Ele não é santo
É menino, é pobre, é órfão
“Pula a fogueira Iaiá, pula
fogueira Iôiô”
João, que não é o santo,
sente fome, sente frio
Olhos tristes, perdidos nas
lembranças do abandono
Lá dentro há dança, aqui
fora, dói seu estômago
No céu há São João, o santo
Sobre a calçada, tremendo,
há o menino
Oh São João! tenha piedade
Dessa criança que, sozinho,
chora
No anonimato.
VENTANIA (Autor: Riano)
VENTANIA
Tantas possibilidades tive
De fazer tudo, de ter tudo
De ir a todos os lugares
De comer todos os manjares
De estar em todos os ares,
Em todas as mulheres, todas as colheres, todos os tempos
Mas sou apenas parte
Daquilo que faz do nada uma arte
Da vida em um pedaço de origami
Que me dobra, amassa, transpassa minha mente até fazer-me eternamente
perdido !
Ainda que bem sucedido
No que se considera emprego
No que se julga negócio
Nas horas de um inocente ócio
Na beleza de minha família
Mesmo assim, questiono
E ainda que ache toda a verdade
O paraíso me gerará dúvida
Talvez isso mova os ciclos
Da chuva que permeia o solo
Do corpo que anseia colo
Do barro que teima em ser gente
Do que se mata para poder viver !
Autor: Riano
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