segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Nas sombras da ponte



NAS SOMBRAS DA PONTE
            O vento frio cortava sua pele como navalha naquela madrugada de junho. Karine caminhava a passos lentos pelo beiral da ponte que ligava as cidades Colinas da Primavera e Recanto Bonito. Aproximou-se, hesitante, da borda. Olhou novamente aquelas bochechas rosadas daquele anjinho que, indiferente, dormia sem se perturbar com a lágrima que caiu sobre seu aveludado rosto.
            Karine era uma linda morena de pele achocolatada, que em seus vinte e oito anos aparentava dezessete. Seus olhos castanhos claros contrastavam agressivamente com seus cabelos de ébano e seus lábios de carmim que acentuavam as salientes maçãs de seu rosto que exalavam sua beleza e sensualidade juvenil.
            Waldir surgiu no momento exato em que Karine mais necessitava de amparo, carinho, atenção e braços que pudessem lhe fazer sentir-se ancorada em um porto seguro. Waldir era um homem de 32 anos, olhos negros e brilhantes, sorriso atraente e barba por fazer que fez brilhar os olhos e inundou de fantasias os pensamentos de Karine assim que o conheceu.
            De família simples, Karine era a caçula dos quatro irmãos que se acotovelavam em um barracão de três cômodos com vazamentos na pia, colchões de espuma sem revestimento, espalhados pelo chão, cortina de chitão separando os ambientes, uma geladeira que mais roncava do que gelava, fogão de quatro bocas das quais somente duas funcionavam, sofá com encosto e assentos rasgados e na despensa, farinha de trigo, maisena, arroz e macarrão.
            Karine vestiu seu melhor vestido, um tubinho curto, de malha preta, acima do joelho, que expunha suas coxas grossas e perfeitas, que ganhara de presente na última faxina que fizera. Calçou suas sandálias de couro surradas, descascadas no bico e faltando algumas lantejoulas que as decoravam. O batom vermelho acentuava de maneira obscena aqueles encantadores lábios e o rímel exagerado realçava ainda mais aqueles olhos de luar de agosto. Guardou no sutiã, juntamente, o bilhete amarrotado contendo o endereço da entrevista de emprego e o dinheiro da passagem de ônibus.
            Waldir era gerente geral de uma grande empresa do ramo de transporte de cargas e gostava de entrevistar os candidatos às diversas vagas que ocasionalmente sua empresa oferecia. Naquele dia, entrevistaria as candidatas a copeira que trabalharia no andar de sua sala, preparando e servindo café aos diversos clientes que ali se reuniam com Waldir semanalmente.
            Karine desceu apressada do ônibus, ajeitou seus cabelos, retocou o batom e dirigiu-se até o prédio onde seria entrevistada. Ainda no elevador, olhou-se no espelho, checando suas costas, se sua calcinha estava marcando seu vestido e desceu no oitavo andar espalhando pelo corredor seu perfume de aroma doce comprado de um camelô no terminal rodoviário.
            Quando Waldir solicitou que entrasse a próxima candidata, não conseguiu fechar a boca enquanto Karine se aproximava de olhos fixos nos seus, passos firmes cada um diante do outro como aprendera vendo desfiles de moda na televisão. Seus cabelos soltos, longos, baloiçavam como as ondas do mar qual pêndulo nas mãos de um hipnotizador que sugeria ao incauto coração de Waldir que se apressasse em suas batidas até então comportadas.
            Naquele final de dia houve comemoração com direito a pipoca, guaraná e os deliciosos bolinhos de chuva para celebrar a contratação de Karine que receberia um salário mínimo, vale-transporte, ticket refeição e uma gratificação de cinco por cento caso não se atrase nenhum dia a cada mês.
            Dois anos se passaram céleres e Junho novamente chegou trazendo seus dias de brisas frescas e noites congelantes que Karine facilmente contornava nos braços de Waldir. Ainda estava presente em suas lembranças quando dois meses após sua contratação viu-se refém dos galanteios de Waldir. Naquela noite de sexta-feira, Waldir, já impotente contra os ímpetos de desejo e paixão, a convidara para que ficasse um pouco mais além do expediente pois tinha alguns a tratar com Karine.
            Waldir fechou as persianas de sua sala que faziam vista à rua e quando Karine bateu à porta, apressou-se para abri-la. Karine, sem suspeitar das intenções de Waldir ainda acreditava que fora chamada para algum assunto de cunho profissional, ideia essa que rapidamente colocou em xeque quando gentilmente Waldir a cumprimentou segurando e beijando sua mão. Karine sempre observava Waldir dissimuladamente e sem dúvida não poderia negar que também sentia uma certa atração por aquele homem sempre gentil e educado.
            A conversa, ali mesmo no escritório, não tardou na companhia de um bom vinho que Waldir havia precavidamente comprado. Quando Karine tentou recobrar o domínio da situação, seus braços já envolviam o pescoço de Waldir enquanto suas mãos a seguravam firmes pelo quadril, puxando-a de encontro a seu corpo e beijou aqueles lábios agressivamente macios que em momento algum se debateram ao contrário.
            Os documentos sobre a mesa de trabalho de Waldir, seu notebook e os demais utensílios de escritório voaram pela sala caindo silenciosamente sobre o tapete, contrastando com os sussurros abafados de Karine quando Waldir a jogou sobre a mesa e arrancou os botões de sua saia de uniforme para que suas mãos subissem lentamente levando consigo retalhos da meia-calça enquanto suas unhas delicadamente lhe arranhavam a pele, sem dor e sua boca vertiginosamente mergulhava naquele colo entre aqueles firmes e volumosos seios.
            Os encontros se repetiram por várias vezes também no palco do apartamento de Waldir.
            Setembro chegou trazendo cores e perfumes e um brilho especial aos olhos de Karine. Coração disparado, foi até a farmácia naquela tarde de domingo e comprou um teste de gravidez que, mais tarde, acusara duas linhas azuis. Karine saiu correndo da farmácia e foi direto ao apartamento de Waldir contar-lhe a boa nova. Waldir abriu a porta, sem entender o motivo de tanta euforia de Karine quando a mesma pulou em seus braços e confessou aos seus ouvidos:
- Meu amor, você será papai!! – disse, engasgando-se em soluços.
- O que? – assustou-se Waldir – Você ficou louca? Não havia me dito que estava usando anticoncepcional ?
- Não sei o que houve meu amor, eu juro! Comecei a sentir tonturas e náuseas e como “não veio” esse mês, resolvi fazer o teste
- Tudo bem Karine, vamos não se preocupe, vamos cuidar disso, eu conheço uma clínica de um médico amigo que pode cuidar discretamente dessa situação. Ninguém no escritório saberá que um dia você engravidou.
- Não! Waldir, não! Não podemos fazer isso, é nosso bebê, nosso filho, seu filho, não quero fazer isso.
- Isso então será problema seu Karine, eu não pretendo assumir nenhuma paternidade nem tampouco cuidar dessa criança. Não suporto crianças e além do mais, não somos casados nem temos compromisso sério. Se você quiser ser mãe, será por sua conta própria e terá que arcar com tudo sozinha.
            Waldir, dois meses após a notícia da paternidade, abandonou o emprego e mudou-se de cidade sem deixar rastros. Karine, mesmo grávida, foi demitida pelo novo gerente no mês seguinte e aconselhada a reclamar seus direitos na justiça.
            Sua família não a abandonou, porém, grávida, não conseguira emprego algum nos meses seguintes. Seus irmãos, todos desempregados. Karine, à noite, não sabia se os movimentos em seu ventre eram do bebê ou de fome. Conseguiu junto à assistente social de seu bairro, alguns pacotes de fraldas e um enxoval com alguns pares de roupas de recém-nascido.
            O vento frio cortava sua pele como navalha naquela madrugada de junho. Embrulhado em uma manta que ganhara de uma colega de quarto na maternidade pública, Karine contemplava seu desnutrido, minúsculo e indefeso rebento que nascera há alguns dias. Karine não era lactante e o alimentava com leite e maisena que ganhava de seus vizinhos, porém nem todos os dias. Augusto, como se chamaria se fosse registrado, mas Karine não poderia trazer ao mundo mais uma alma para somar à miséria com que vivia junto a sua família.
            As luzes da cidade pareciam cintilar como árvore de natal, distantes, perdidas no horizonte do rio que corria silenciosamente sob a ponte. Karine descobriu aquele rostinho rosado, mais uma vez, fazendo-o espreguiçar-se e balbuciar um choro que mais se assemelhava a uma súplica e novamente adormeceu, sem perceber o momento em que Karine o beijou suavemente na testa, apertou-o contra seu peito amargurado, e saltou na escuridão da noite, tocando a água no segundo seguinte em que sua quente lágrima caía sobre aquele rosto inocente.