quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Raul.

** Amigos leitores. Para melhor compreensão da temática desse texto, por favor leiam o conto publicado aqui no meu blog intitulado "Ah! Veruska!" o qual narra a problemática de origem. Muito grato.

Raul.

O show durara cerca de uma hora e meia. Entre beijos e abraços Raul assistira ao espetáculo ao lado de sua amante. Michelle era seu nome. Saíram conversando animadamente e foram de táxi até o hotel no qual Raul se hospedara, tendo o cuidado de registrar-se com outro nome. Raul pediu que servissem champanhe e morangos. Como em uma noite de núpcias, Raul tomou michelle nos braços e a carregou até o leito daquele quarto de hotel.
O sol já estava a pino quando Raul e Michelle despertaram. Ele tateou à sua volta até encontrar seu celular, que havia deixado no silencioso na noite anterior e conferiu as horas. Já passavam das onze da manhã. Michelle ainda dormia, envolvida em lençóis, com um braço repousando sobre o peito de Raul e parcamente cobrindo sua nudez com aqueles lençóis de marfim.
Raul por alguns segundos estranhou o fato de Veruska não ter ligado pois ela o fazia todas as manhãs, principalmente quando ele viajava a trabalho, mas não durou mais que poucos segundos sua preocupação pois logo em seguida Michelle se espreguiçara e Raul a abraçou e sussurrou - Bom dia meu amor.
Enquanto a água da banheira tornava-se carmim, Veruska gritava de dor quando a lâmina feriu o nervo de seu antebraço, causando-lhe uma dor quase insuportável e seu corpo quase saltou da banheira, suas pernas tremiam, seus pés contorcidos e respiração contida, seu coração parecia querer saltar pela boca bombeando freneticamente aquele líquido viscoso que mantinha a vida naquele corpo lindo, que naquele instante contorcia na angústia, parcialmente submerso naquela água turva e salgada pelas lágrimas.
Concluído o segundo corte, Veruska respirava com dificuldade e sentia os primeiros sinais de fraqueza em seu corpo. Por fração de segundos pensara em desistir daquele ato mas o palco estava montado e a representação de sua vida tornara-se uma grande tragédia da qual ela não desejava mais participar. Toda sua vida desfilou em sua memória, desde sua infância, o colo de seu pai que a chamava de "minha menininha", para o qual ela era absolutamente tudo em sua vida, os afagos de sua mãe, o carinho dos amigos e o amor... deteve seu pensamento e o soluço quebrou o silêncio enquanto sua vida escapava pelos pulsos.
Raul tivera um dia agradável. Michelle acordara e preguiçosamente passaram o dia se amando naquele quarto de hotel, onde Raul pediu que servissem o almoço e, mais tarde, o jantar. Entre juras de amor eterno, promessas de pedir o divórcio, planos de constituírem uma família e mudar de cidade para começar uma nova vida, Raul despediu-se de Michelle, deixando-a em casa e retornou para a sua. Queria surpreender Veruska dizendo que havia retornado no primeiro voo disponível.
Raul ainda amava Veruska - e quem não amaria? - aquela doce mulher que tudo fazia por ele, mas Raul era aventureiro, incapaz de ser homem de uma só mulher. Discursava a mesma história para muitas, no entanto jamais teria coragem de separar-se de Veruska.
Ligou uma vez mais para Veruska sem resposta, apenas caixa postal. Abriu a porta devagar e entrou silenciosamente. Esperava encontrá-la no sofá da sala vendo tv ou devorando um livro, haja vista que ela adora ler. Chamou-a pelo nome sem resposta. Procurou-a pelos outros cômodos da casa sem sucesso. A casa encontrava-se no mais completo silêncio e organizada como sempre fora. Tirou o paletó, pendurando-o no cabide da entrada, deixou sua bagagem de mão sobre o tapete da sala e subiu as escadas em direção aos quartos e biblioteca onde a procurou sem encontrá-la, também.
Raul abriu silenciosamente a porta do quarto que encontrava-se na penumbra, tendo apenas a luz de um abajur de cabeceira. A cama estava arrumada e Veruska não encontrava-se nela e no entanto não se ouvia nenhum ruído vindo do chuveiro. Chamou Veruska pelo nome, sem resposta. Raul acreditava que Veruska o vira chegando e resolvera esconder-se para surpreendê-lo como já o fizera por diversas vezes, brincalhona que era.
Foi como um tiro no peito, daqueles em que o projétil encontra diretamente o coração pulsante e o faz parar. Se Raul o visse ao espelho, veria um espectro, pálido como se não houvesse uma gota de sangue sequer para colorir sua tez. As pernas, imediatamente, ficaram trêmulas e teve que se apoiar na maçaneta da porta para que não desabasse no chão. A respiração cessou imediatamente, suas pupilas dilataram bem como arregalou os olhos e suas sobrancelhas pareciam fugir de sua testa enquanto suas mãos suaram frio e seu coração bombeava desesperado ao mesmo tempo que ele o sentia quase saindo pela boca.
Quase mergulhada na banheira, com seu rosto inclinado para o lado, apoiado na borda da banheira, seus olhos semiabertos ainda pareciam cheios de vida, tão brilhantes e doces eram. Seu rosto angelical, de nariz perfeito, demonstrava um sofrimento que somente ela soube a intensidade. Sua boca impecável sustentava, ainda, lábios um pouco entreabertos, certamente pela dor e pelos últimos suspiros entre soluços. Raul mal conseguia ver sua pele alva, macia, exceto parte dos delicados ombros que emergiam. Seus braços estavam submersos e seus cabelos repousavam, sedosos, fora da banheira, exceto algumas mechas que grudaram em seu rosto pois a janela estava um pouco aberta e uma brisa soprava carinhosamente.
Raul soltou um grito desesperado que mais parecia um grunhido que ecoou por toda a casa. Levou as mãos ao rosto e desabou de joelhos ao lado da banheira onde, inerte, repousava aquela que dedicou parte de sua vida àquele homem que desdenhou de seu amor e não valorizou toda a dedicação que recebera. Por que?? - Repetia Raul, ainda incrédulo com o bizarro quadro que se descortinava diante de seus olhos. Curvou-se sobre a banheira, abraçou seu corpo já enrijecido e numa cena patética, beijava seu rosto e seus lábios sem vida. Raul não saberia precisar por quanto tempo ficou ali abraçado a Veruska tentando encontrar uma resposta para sua mente perturbada e cheia de questionamentos. Tateando a mão submersa de Veruska Raul percebeu que ela não usava a aliança de casamento e bem ao lado da banheira, havia uma folha de papel. Raul apressou-se em averiguar do que se tratava... era uma carta de Veruska.
"Raul.
Espero que seja você o primeiro a ler essa carta e também a encontrar-me.
Não fique surpreso com o desfecho de minha pobre vida pois você contribuiu em grande parte para tal e tampouco vou desperdiçar seu tempo forçando-o a ler adjetivos de baixo calão que, embora merecedor, não vou me rebaixar a tal ponto, uma vez que você tem plena consciência de que és um cafajeste.
Eu dediquei toda minha vida, desde que nos conhecemos, a tentar fazê-lo feliz, amado, desejado, cuidado, acariciado em todas as vertentes do carinho, da entrega e do companheirismo. Briguei com minha família, desafiei meus pais que sempre foram contra nosso relacionamento e, principalmente, magoei meu pai, que nunca aprovara nossa união, repetindo que não confiava em você e que cedo ou tarde me faria sofrer.
Não sofri, Raul. Sofrimento é pouco diante do que senti. Preferi tirar a própria vida a encarar meu pai e dizer que ele estava certo e que você não valia o chão lamacento que pisa.
Contempla-me Raul, pela última vez antes de atirar-se nos braços daquela mulher com a qual foi ao show, mentindo que iria para Buenos Aires. Sim, eu estava lá e presenciei boa parte de suas cenas amorosas "meu querido".
Você, como tantos outros, vão me julgar fraca por tomar a atitude que tomei, mas cada um conhece as forças que habitam em si mesmos e cada qual ignora o louco que reside em nós.
Desejo que seja infeliz Raul e que a vida lhe devolva em dobro cada lágrima de tristeza que derramei.
Eu vivi para ti Raul, embora de tua vida, verdadeiramente, nem um minuto me dedicastes.
Não me despedi de ninguém, muito menos de meus amados pais. Enviei-lhes uma carta pré-datada que em breve chegará em suas mãos, contendo minha despedida àqueles que de fato me amaram.
Veruska."

Raul, antes de comunicar o acontecido à família de Veruska, pegou o celular e ligou para Michelle contando-lhe, em prantos, o acontecido.
- Michelle, preciso de você ao meu lado nesse momento tão doloroso.
- Raul, lamento profundamente o acontecido, não desejava jamais esse desfecho.
- Eu também não queria que fosse assim meu amor. Havia planejado me separar normalmente e continuar a vida ao seu lado, me casando contigo.
- Raul, eu preciso lhe contar algo. Eu também menti a você. Sou casada, amo meu marido, não tenho intenção alguma de me separar dele e me unir a você Raul. Não pensei que você estivesse falando sério quando disse que pretendia que nos casássemos. Todas as vezes que não podia atender a seus telefonemas nem estar contigo era porque estava com meu marido. Achei que você e eu fôssemos apenas um caso de infidelidade de ambas as partes e nunca imaginei que você se apaixonaria por mim como dizia estar. Sempre pensei que fosse apenas parte de seu discurso conquistador. Lamento Raul, mas não devemos e nem quero mais lhe ver. O prédio onde você me buscava era apenas um disfarce, nunca morei ali e vou trocar meu número de telefone. Não quero me envolver de maneira alguma nessa tragédia. Desculpe Se você se apaixonou por mim e eu não. Seja mais cuidadoso com seus sentimentos Raul. Até nunca mais meu querido.
- Michelle!! não desligue... Michelle!! ... Michelle!!!

“Experimente lançar uma taça de cristal ao chão, depois peça desculpas e perdão e espere pra ver se os cacos se juntarão e ela ficará como antes” (Frase de autor desconhecido).

** Em breve a carta de Veruska a seus pais.
Lelo.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Pela última vez...

Sunset Village era uma cidade pequena, muito pequena, com pouco mais de quatro mil habitantes. O relógio ainda marcava pouco além das oito de uma manhã ensolarada e aquele calor insuportável já causava certo incômodo. À medida que o trem se aproximava da estação as lembranças inundavam seus pensamentos e sua alma como um enxame. O tempo havia parado para aquela cidade. Treze anos se passaram e praticamente nada havia mudado. A igreja continuava a mesma, necessitando de reparos, o centro comunitário onde aconteciam as quermesses implorava uma reforma urgente. O coreto da praça já não possuía mais os bancos que acomodavam os casais nas noites de romance em que a lua gentilmente derramava sua luz argentina revelando silhuetas abraçadas de lábios colados.

Laura deixara subitamente aquela cidade prometendo a si mesma que jamais retornaria. E não o faria se não houvesse um motivo mais forte que seu ódio e desprezo por algumas pessoas daquele lugar. Esse motivo tinha nome, endereço, carteira de identidade e a fazia suspirar desde que se conheceram mas os dramas familiares os empurraram para bem longe e a distância separou fisicamente o que a vontade de ambos unira há anos. À medida que o trem se aproximava da estação as lembranças invadiam lhe o coração e causavam-lhe uma dor sufocante. O trem foi parando lentamente mas, em contrapartida, seu coração acelerava. O barulho estridente das rodas freando sobre os trilhos lhe trouxera momentaneamente à realidade. Ajeitou o vestido, os cabelos, retocou o batom, levantou-se, pegou a nécessaire e a pequena bolsa de viagem pois não pretendia demorar-se. Desceu lentamente, olhou à sua volta, ninguém a aguardava, aliás, ninguém sabia de sua vinda.
Heitor era alegre, inteligente, divertido, sempre fora cheio de vida, adorava praticar esportes, principalmente os radicais, adorava ler, escrever, era um aficionado por música e geralmente se comunicava através delas. Era muito estudioso e se interessava por praticamente tudo que fosse cultural e amava aprender, mesmo que nenhuma relação houvesse com sua profissão. Tinha olhos brilhantes, cheios de vida, castanhos claros como o mel e um sorriso que dançava em seus lábios durante todo o dia, mesmo se sangrasse em chagas seu coração, Heitor sorria. Há quase quatro anos Heitor perdera seu pai numa disputa contra o câncer. Há seis meses, uma profunda tristeza se apoderou de Heitor, vinda do nada, como uma nuvem sombria que cobria seus dias, silenciava suas brincadeiras e arqueavam levemente aqueles lábios que sempre sorriam e agora não mais. Há seis meses, insistente, constante, inescrupulosa, a depressão rondava Heitor. Há seis meses, escondendo de todos, Heitor recebera o mesmo diagnóstico que seu pai. Não se entregou, mas decidiu lutar sozinho, sem preocupar as pessoas à sua volta. Se a morte vem suave como um véu, que o alcance assim, sem alardes, sem infligir sofrimento aos que o querem bem.
Laura apertou entre os dedos de sua mão que suava frio, aquele pedaço de papel... um telegrama que dizia o seguinte: "Laura vg venha depressa ver Heitor pt está muito mal vg deprimido vg em estado terminal pelo câncer embora seja indolor como o que acometeu seu pai pt certamente ele gostara muito de te ver novamente pt o endereço dele eh o mesmo pt". Era incrível como um simples pedaço de papel transformou sua vida repentinamente. Não seria fácil, sabia, contemplá-lo sem que as emoções a dominassem. Intimamente ela sabia que algo estava errado. Conversavam quase todos os dias mas há algumas semanas Laura o percebera triste. O telegrama só veio confirmar suas suspeitas de que algo não estava bem.
Heitor morava próximo, aliás, nada era longe naquela cidade tão minúscula. Embora a cidade contasse com serviços de táxi Laura decidira caminhar até a casa de Heitor. Passou diante de um prédio onde houvera uma sorveteria chamada "Beijo Frio" na qual passeavam nas tardes de domingo para saborearem um sundae, banana split ou milk shake e também fora palco de beijos ardentes e demorados. A floricultura ainda permanecia aberta e vendia os mesmos arranjos de treze anos com pouca inovação. A pizzaria onde frequentavam após as sessões de cinema e o teatro sempre em reformas. Era mais um dia para Heitor, que continuava dormindo muito tarde pois o sono não chegava. Ligava a TV, passeava pelos canais, não encontrava nada que lhe interessava e então desistia da TV e lia um livro. Arrependia-se no dia seguinte quando o despertador lhe sacodia mas todos os dias eram assim. Tomava seu café e saía para trabalhar. Heitor emagrecia. A doença o impedia de ganhar peso, drenava suas forças e o fragilizava física e emocionalmente atirando-o numa crise depressiva sem precedentes.
A casa era aquela. Passou por reformas, mudou a fachada, mas era aquela. Os traços arquitetônicos não mudaram. Laura deteve-se por alguns instantes diante do portão, recordou todas as vezes que ali chegavam, ele abria o portão, entravam de mãos dadas ou abraçados, ele com seu jeito de menino lhe fazendo cócegas nas costelas e passando correndo à sua frente, até o jardim, onde colhia uma flor qualquer, estendia a mão e a colocava em seus cabelos. Ele a tratava como uma Rainha e ela se sentia a própria em sua vida. Como Laura chegara mais cedo, sabia que ele trabalhava até o final do dia, foi caminhar pela vizinhança, resgatando na memória os bons momentos vividos e tantos outros que deixara de viver. Laura fez escolhas erradas em relação a Heitor e agora, separados, percebia isso. A notícia da doença de Heitor a pegara de surpresa e todo esse peso da distância e de seu rompimento com ele parecia um elefante caminhando sobre seu coração, esmagando-o sem piedade.
Laura percebera naquele instante o quanto valorizou pouco a relação que teve com Heitor. A ideia do "nunca mais" a aterrorizava. A morte não era uma ideia bem aceita por ela. O "nunca" era tempo demais e Laura sempre que se deparava com essa grandeza, tentava colocar um limite ao "nunca", refutando a ideia de que isso era eterno, que jamais sentiria novamente aqueles lábios doces colados aos seus, não se perderia na coloração de mel de seus olhos, não sentiria aquela pele cheirosa e macia em contato com a sua, não teria aquelas mãos que a seguravam firmes e ao mesmo tempo eram tão cariciosas no trato com a geografia de seu corpo. Jamais poderia novamente deitar seu rosto em seu peito e adormecer em seus braços vendo o dia raiar e ser acordada com um beijo carinhoso e café na cama, nem ajudá-la na tradução dos seus textos técnicos em inglês ou salvá-la nas suas dúvidas com a tecnologia, nem preparar sua salada preferida, tampouco amá-la como somente ele sabia fazê-lo, enfim, a palavra "nunca" a apavorava, afinal, sua alma gêmea estava partindo e ela não podia fazer nada para impedir isso.
Quando ela o avistou chegando em casa, seus olhos ainda estavam vermelhos e lacrimejando. Todo o amor que ele lhe dedicou deveria ter sido o bastante, mas não foi e agora ela teria que encarar a dura realidade. Caminhou lentamente ao seu encontro, parou diante do portão e deixou que ele se aproximasse. De longe ela viu aquele sorriso aberto estampado em seu rosto, seus olhos brilharam como faróis quando a viu e seus braços a envolveram naquele abraço de Urso apertado e que a acolhia por completo. Talvez fosse o último... Laura não sabia... quem sabe? a vida não marca a hora da despedida, portanto Laura queria viver intensamente aqueles momentos ao seu lado, pois no dia seguinte poderia ser impossível sentir todo aquele amor que mesmo diante da decisão dela de terminar o relacionamento, jamais diminuíra ou enfraquecera. Aquela poderia ser a última tarde, a última noite, o último beijo, a última vez.