sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

The Gentleman

                Embora Jim não gostasse de redes sociais, resolveu cadastrar-se em um daqueles sites de relacionamentos, que prometem ajudá-lo a encontrar pessoas agradáveis e completamente compatíveis com seu perfil e modo de vida. Precisava criar um perfil, escolher ou não um apelido ou usar seu próprio nome. Mas usar seu nome soava estranho, falso (fake, como dizem no jargão da internet) afinal fora batizado como Jim Morrison pois seu pai era um fã incondicional da banda The Doors e resolvera homenageá-lo (ou castigá-lo) tornando seu primogênito um homônimo do líder daquela famosa banda. Resolveu adotar um pseudônimo para as redes sociais e escolheu “The Gentleman”. Isso mesmo, em inglês, assim já eliminaria da lista as pobres almas que não conseguissem sequer usar um tradutor do google para saber o que significava “The Gentleman”.
                A parte mais difícil era falar sobre si. O que escreveria a seu respeito? Não queria redigir um dossiê de sua vida. Não queria nada entediante. Acreditava que conhecia a si próprio mas falar de suas qualidades e defeitos o deixara completamente mudo e sem palavras. Se exaltasse muito suas qualidades poderia parecer esnobe; se exaltasse muito seus defeitos, poderia parecer piegas ou até mesmo assustar as futuras pretendentes. Escolheu o caminho do meio, como aconselha a sabedoria chinesa. Seu perfil ficou assim: “Homem maduro, inteligente, simples, sincero, um pouco impaciente, muito romântico, olhos cor de mel, 1.79 m., tipo físico atlético, praticante de esportes, sem vícios e solteiro”.
                As primeiras mensagens não demoraram a chegar, embora a maioria fossem apenas “Oi, tudo bem?”. Incrível como faltam assuntos para a grande maioria das pessoas.  Jim poderia classificar as mensagens em três categorias: desinteressantes, pouco atrativas, indiferentes. Raramente conseguia encontrar alguém que lhe prendesse a atenção. Jim acreditava que aquelas pessoas tinham os diálogos salvos em algum documento do word, com as perguntas prontas, bastando copiar e colar ali no chat, pois eram sempre as mesmas: “Onde mora?”, “Qual sua idade?”, “O que faz da vida?”, “Tem filhos?”, “Mora com quem?”. Surpreendente alguém acreditar que tais perguntas possam esclarecer algo a respeito da vida de quem quer que seja. Qual a relevância de saber “Onde mora?”, pergunta imediatamente seguida de uma exclamação “Muito longe!!” como se um relacionamento fosse possível somente entre vizinhos? - Ponderava Jim. Ainda mais estranhas eram as frases do tipo “Onde costuma ir? Quais barzinhos?” – Como assim, quais barzinhos? Não há outras opções? Em dúzias e mais dúzias de mensagens, somente uma pessoa perguntou se “Gosta de teatro? Cinema?”, as demais vangloriavam-se de “Sair para tomar umas”. Jim não bebia... socialmente apenas... e olha lá, pois não procurava uma parceira de bar nem tampouco queria alguém que se embriagasse.
                Nesse universo de indivíduos, Jim aprendeu que a biodiversidade mental era muito mais abundante que imaginava, embora o ostracismo cultural fosse evidente na maioria das pessoas que conhecera, raros exemplares sobressaíam e conseguiam manter um diálogo que rompesse fronteiras de assuntos além dos bailes funks, shows de música sertaneja e telenovelas ou que o confundissem com psicólogo e despejassem suas frustrações com o último namorado ou seus problemas domésticos com os filhos. Jim ficou receoso de que as pessoas procurassem um site de relacionamento não com o intuito de encontrar alguém mas apenas para que fossem ouvidas, pacientemente, por um estranho que não pudesse opinar (embora pedissem conselhos) mas que estivesse ali curando as chagas de suas vidas solitárias.
                Ela parecia um oásis em meio àquele deserto de opções saudáveis e interessantes. Seu perfil descrevia uma “Mulher madura, 27 anos, olhos claros, cabelos claros, em forma, pós-graduação, gosto de cinema, teatro, restaurantes, viajar, natureza, praticar esportes, ler e uma boa música com uma boa companhia”.  O papo foi agradável, fluiu normalmente e embora o gosto pela leitura não tenha ficado evidente nas conversas, ao menos “O Pequeno Príncipe” ela leu. Jim arriscou agendar um encontro em um shopping, em um sábado próximo.
                Com as férias escolares o shopping estava muito cheio, principalmente de adolescentes e famílias com crianças, aumentando o burburinho característico. Jim procurou uma mesa na área de alimentação e por sorte encontrou uma bem diante do elevador e da escada rolante que permitia o acesso à área de alimentação. Jim chegara mais cedo, claro, pois jamais faria alguém esperar por ele, ainda mais no primeiro encontro. Como não haviam combinado o local exato, ligou e disse exatamente onde estaria, recebendo a confirmação de que em vinte minutos ela chegaria. Jim não tirava os olhos da escada e do elevador, as duas únicas vias de acesso ao lugar onde estava.  Cada mulher que subia, Jim observava. Torcia para que algumas fossem a que esperava e também para que outras passassem direto. Mas ela havia facilitado sua curiosidade e havia dito que usaria um vestido azul marinho, pouco acima dos joelhos e uma bolsa também azul. Não era muita coisa, mas servia como critério de eliminação.
                Jim nascera em uma família de recursos modestos, mas seus pais lhe deram o primordial, uma ótima educação e ambiente saudável, princípios e honestidade. Seus pais, embora semianalfabetos, sempre lhe compravam livros e Jim adorava ler, desde que fora alfabetizado, nunca parara de ler e sabe-se lá o porquê, seus escritores favoritos eram Fernando Pessoa e Gabriel García Marquez. Seu gosto pela leitura, música e artes sempre foram expressivos em sua infância e desde a adolescência Jim preferia as canções românticas às músicas que estavam na moda em sua juventude. O romantismo era nato naquele rapaz que observava seu irmão corresponder-se através de cartas (isso mesmo, cartas) com mulheres de todo o país. Incrivelmente elas respondiam e a cada semana o carteiro entregava dezenas de cartas. Já naquela época seu irmão usava, em suas cartas, o pseudônimo de “jovem triste”, que lamentavelmente veio a se comprovar durante sua introspectiva e solitária existência (que Deus o tenha).
                Primeiramente os cabelos castanhos dourados, como as nuvens iluminadas pelos primeiros raios de sol de uma manhã de outono, lambendo seus ombros nus como as águas de uma cascata de águas cristalinas e em seguida os olhos claros, contornados por uma sombra levemente esverdeada, lápis escuros marcando suas pálpebras, tornando ainda mais evidentes aqueles olhos quase translúcidos que ladeavam um nariz perfilado que repousava logo acima daqueles lábios carnudos e perfeitos, queixo angular, braços fortes, seios médios e beneficiados pelo seu decote em “V” que descia até a altura do abdômen firme e sem gordurinhas abdominais, cintura marcada pelo vestido justo ao corpo e que descia até pouco acima do joelho, evidenciando pernas que certamente praticavam aulas de musculação e, salto alto, caminhava delicada e graciosamente em sua direção. O colar e brincos com pedras escuras criavam um contraste naquela pele alva e de aparência sedosa, que caminhava em sua direção, abrindo um sorriso ainda tímido e contido.  Jim, de olhos grudados naquela silhueta que se dirigia até ele, sinalizou discretamente, levantou-se para recebê-la, convidando-a para sentar-se e iniciaram um longo diálogo a respeito de suas vidas.
                Duas semanas se passaram e Marianne aparentava ser uma pessoa centrada, madura, segura de si, carinhosa. Jim e Marianne se encontravam praticamente todos os dias, claro, pois o desconhecido, a conquista, as primeiras descobertas, tudo é muito encantador. Jim, que fazia jus ao apelido “The Gentleman” era calmo, sempre conversava com voz pausada e em tom baixo, atenuado, valorizava na vida o que realmente importa e agrega valores à sua vida. Marianne, ao final da quarta semana, não conseguia mais esconder que começara gostar de Jim. Luis Vaz de Camões estava correto quando escreveu “O amor é fogo que arde sem se ver” pois quando “acordamos” dos pensamentos ou dos sonhos, surpreendemos a nós mesmos apaixonados. Marianne, talvez, começara a sentir-se apaixonada por Jim, pois a paixão além de despertar os melhores sentimentos que temos guardados, também descobre as imperfeições que tentamos esconder. Com Marianne não foi diferente. Vítima de suas imperfeições, como todos as têm, Marianne começara mostrar-se muito ciumenta, criava e alimentava situações que só aconteciam em seus pensamentos e repentinamente mudava seu humor. Jim era um homem quase sempre bem-humorado e essa era uma característica que ele buscava numa mulher. Marianne, tentarei reproduzir o diálogo aqui, buscava, quando não existia, motivos para alimentar seus ciúmes e sua vontade intrínseca de brigar e discutir, como quando num dos passeios pelo shopping, aconteceu o seguinte:
- Jim, veja esse vestido.
- É bonito, Marianne. Gostei.
- Você gostou Jim?? Então você quer que eu use um vestido assim? Quer ver sua namorada vestida como uma “piriguete” num vestidinho curto assim?? É esse tipo de mulher que você quer ao seu lado Jim? Pois eu não sou assim não, se você quer sair com uma “piriguete”, pode procurar outra pessoa.
- Marianne, você me perguntou se eu gostei do vestido, eu apenas respondi que sim. Não necessariamente que queria que você usasse um, mas eu acredito que você ficaria bem nesse modelo. Além do mais o que define uma “piriguete” são suas condutas e não suas roupas. Existem “piriguetes” vestindo tailleur.
- Pois você nunca vai me ver usando um vestido assim Jim, pode procurar outra pessoa se você quer alguém que use um vestido sem-vergonha desses.
                Jim calou-se enquanto Marianne continuou seu sermão por alguns longos minutos enquanto caminhavam pelo shopping, até que Jim pediu gentilmente que Marianne encerrasse aquele assunto. Primeira discussão no prazo de poucas semanas. O assunto do vestido ainda veio à tona por Marianne nas duas semanas seguintes. Outros motivos, sempre banais, também surgiram no decorrer do tempo. A Marianne que nas duas primeiras semanas mal se importava com as ligações que Jim recebia dos amigos, já não conseguia mais ficar calada sem perguntar “Quem é que está te ligando?” nas demais. Marianne, que nunca fora adicionada por Jim à sua rede social, agora sentia necessidade de que Jim a adicionasse, pois queria “Ver as fotos das mulheres que estão no seu face”. Algumas outras situações semelhantes aconteceram nos dias seguintes e que antecederam o dia em que Jim olhou Marianne nos olhos e disse: “Marianne, você está ficando chata!”.
                Jim lembrou-se imediatamente da magnífica lição de Zaratustra: “Ditoso é o homem que pode zombar de si mesmo!” e começou a ponderar a respeito de sua solidão, se não estaria melhor sozinho do que agregando um “inferno” à sua vida. Por que as pessoas (homens e mulheres) em sua maioria são assim? Quadros belíssimos à primeira vista e aquarelas quando examinados mais atentamente. Não deveria ser o contrário? Não bajular tanto os olhos alheios, mas escancarar suas qualidades após se conhecerem? Ao menos aqueles que se deixam conhecer? Jim pensava exatamente dessa maneira. Claro que o primeiro contato é o visual, mas esse deveria durar muito pouco pois é efêmero. A verdadeira obra de arte de um ser humano encontra-se em sua alma, em sua personalidade, suas condutas e maneiras de lidar consigo e com as pessoas. Jim aprendera isso ao longo de sua vida. Por isso Jim era encantador, embora não fosse um homem que arrancasse interjeições por sua beleza. Não... Jim era charmoso, simpático, romântico, encantador como homem e como pessoa. Jim refletia sobre alguns aspectos dos relacionamentos. Por que as pessoas mudam? Por que a necessidade de sentir ciúmes? Se alguém está com uma pessoa é porque assim o quer, caso contrário estaria com outra. Por que criar, fantasiar ou imaginar situações que despertem ciúmes? Se não confia em seu parceiro(a) o melhor a fazer é encerrar o relacionamento, seguir cada um seu caminho.
                Em sua experiência nas redes sociais, Jim conversou com diversas mulheres e conhecera algumas pessoalmente, mas, definitivamente, somente a convivência é capaz de derrubar máscaras, evidenciar personas, extrair das pessoas aquilo que elas escondem ou simulam nos primeiros encontros. Marianne ainda não era a pessoa certa para Jim, pois ainda faltava em Marianne a autoconfiança, a segurança de que era uma mulher bonita, inteligente e que não precisava ser tão ciumenta e briguenta. Jim levava uma vida tranquila, era totalmente irracional agregar a essa vida alguém que parecia sentir prazer em criar pequenas intrigas. Jim queria agregar paz e harmonia em sua vida, Marianne seria uma turbulência nela.
                Jim convidou-a para se encontrarem e diante de Marianne resolveu colocar um ponto final naquela incipiente relação. Olhou-a nos olhos, tomou suas mãos, respirou fundo e disse que queria encerrar aquela relação. Mesmo incipiente a relação, não é fácil para nenhuma das partes o rompimento. Mas é necessário. Pior seria levar adiante e apenas adiar o que um dia seria inevitável diante de todo o quadro que ali se desenhava. Jim fitou seus cabelos dourados, seus olhos claros e brilhantes, o rosto perfeitamente desenhado, o corpo esculpido à semelhança de Vênus, literalmente uma mulher muito bonita, mas isso não era tudo e a parte que faltou agregar à beleza daquela mulher foi determinante para que se separassem. O belo nem sempre está diante dos olhos.
                Jim deixou seu trabalho, no final de mais um dia de sexta-feira. O final de semana se aproximava. Uma vez mais Jim estaria sozinho. Chegou em seu apartamento naquela noite de sexta-feira, tomou um banho refrescante, olhou-se no espelho, sorriu para si, colocou seus fones de ouvido, escolheu um playlist de blues, pousou sua cabeça, em paz, no travesseiro, e adormeceu com um leve sorriso nos lábios.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ah! Veruska!

Ah! Veruska!
(Conto premiado em primeiro lugar no concurso literário do SESI / Academia Goiana de Letras)

O relógio marcava quase dezenove horas naquele início de noite de sábado. Veruska abriu a torneira que fazia encher a banheira enquanto terminava de se despir. Sentou-se à borda da banheira, espalhou sais de banho e esboçou um sorriso amarelado quando o fez.
Veruska era uma linda mulher que aos trinta anos aparentava dezesseis. Cabelos dourados e cacheados, maçãs do rosto salientes, olhos suavemente azulados, pele clara que denunciava não ser adepta aos bronzeamentos, nariz perfeitamente esculpido, boca com lábios harmonicamente carnudos e corpo de menina em maliciosas curvas de mulher.
Veruska permanecia solteira à espera de um príncipe encantado que saltasse das páginas de um conto de fadas e a tomasse nos braços com promessas de viverem felizes para sempre.
Raul surgiu em sua vida quando estava fragilizada pelo rompimento de um relacionamento, trazendo novas promessas de acolhimento, companheirismo e principalmente paz. Raul era um homem de 38 anos, caucasiano, voz pausada. Não demorou a apaixonar-se por Raul. Veruska adorava acordar e sentir aqueles braços fortes a envolvê-la e sentir aqueles lábios em seu pescoço com um sussurro de bom dia.
Naquela noite de sábado, Veruska abriu uma pequena caixa de joias que estava guardada na cômoda, retirou uma aliança de ouro cravejada, cuidadosamente escolhida por ela, como sua aliança de casamento. Olhou-a demoradamente, suspirou, colocou a aliança em seu dedo e esticando o braço, observou-a em sua mão esquerda.
Aquela noite de maio jamais seria esquecida. Radiante e sorridente, Veruska passou o dia se preparando para aquele momento. Banho de pétalas de rosas, massagem relaxante, cabeleireiro e finalmente o vestido de noiva, com véu, grinalda e de cauda enorme como sempre sonhara.
A viagem para a noite de núpcias foi perfeita. Saíram da igreja direto para o aeroporto, reservas feitas no hotel Martina al Colosseo em Roma, Itália, bem próximo ao Coliseu. 
Embora o Coliseu estivesse fechado para visitação pública, Veruska conseguiu convencer o vigia local de que seria muito breve sua incursão pelas ruínas. Veruska segurou a mão de Raul e praticamente o arrastou pelos corredores e aposentos em ruínas.
Veruska empurrou Raul de encontro à parede de uma dessas celas, atirou-se em seus braços, num beijo ardente, depois girou seu corpo, ficando ela contra a parede, puxou Raul para si, arrancando-lhe o paletó e suspirou quando sentiu suas unhas deslizando pelas suas coxas levantando o vestido preto rendado. Veruska sempre sonhara em fazer amor ali no Coliseu.
Havia muitos lugares a conhecer e Veruska queria eternizar todos esses momentos ao lado de seu amado. Se aquele homem era um sonho, ela não queria acordar nunca mais.
Veruska abriu os olhos, retirou lentamente a aliança do dedo e atirou-a violentamente contra a parede turvando seus olhos doces e azulados. Com a respiração acelerada e cerrando os dentes, soltou um grito ao lembrar-se de que Raul lhe dissera que viajaria a trabalho. Cuidadosa, nunca deixava Raul esquecer-se de nada quando ele viajava e tampouco tinha o hábito de mexer nos pertences de Raul. Porém, a maleta de Raul havia sido mal fechada e quando Veruska segurou-a pela alça, abriu-se e espalhou papéis pelo tapete do quarto. No meio desses papéis, dois bilhetes para um show que aconteceria na noite seguinte, em uma cidade vizinha, de uma banda que Veruska adorava. Veruska até pensou que seria uma surpresa para ela mesma, mas refutou a ideia. Nesse momento sentiu seu coração sair disparado pela boca, desapareceu o ar de seus pulmões e a cabeça começou a girar.
Qual a razão daqueles dois ingressos? Veruska não queria acreditar no que acontecia e resolveu não dizer nada a Raul.
Assim que Raul despediu-se e saiu, Veruska foi até o aeroporto e dirigiu-se ao balcão da companhia aérea pela qual Raul afirmara que viajaria. Sentiu náuseas e empalideceu quando a atendente afirmou que não havia nenhuma reserva sob aquele nome. Veruska resolveu que iria, sem avisar, até o local do show.
Veruska observava as pessoas chegando para o show. Foi quando seu sangue esvaiu-se de cada veia, cada vaso e nem o gelo seria tão frio quanto sua pele naquele momento em que, subindo as escadas do teatro, chegavam de mãos dadas e dedos entrelaçados, Raul e outra mulher, sorridentes, animados, íntimos. Veruska quase desfaleceu, sua respiração ficou curta, faltava-lhe ar suficiente para inflar os pulmões e oxigenar seu coração. Raul e a mulher pararam por instantes na fila, ele acariciou o rosto dela, afagou seus cabelos, beijou-a nos lábios delicadamente da mesma maneira que costumava beijá-la e entraram no teatro.
Veruska decidiu não assistir ao show. Voltou caminhando a passos ébrios até o estacionamento enquanto se lembrava de seu último diálogo com Raul.
- Oi querida, já cheguei a Buenos Aires. Está tudo bem por aí?
- Oi Raul, está tudo bem meu amor. Como foi a viagem?
- Correu sem problemas querida, está muito frio aqui em Buenos Aires, fiquei feliz ao abrir a mala e ver que você não se esqueceu do meu casaco.
- Sim, eu imaginei que pudesse estar frio mesmo.
- Obrigado meu amor, você sempre pensa em tudo e cuida muitíssimo bem de mim. Agora preciso desligar, pois teremos um jantar de negócios daqui a pouco. Amo você minha Veruska e não consigo imaginar minha vida sem você.
- Beijos querido.
Quanto mais Veruska se lembrava do diálogo travado entre ela e Raul, provavelmente realizado diante daquela mulher, fazendo com que ela, Veruska, assumisse o papel de palhaça, mais raiva ela sentia.
O barulhinho da água que enchia a banheira cessou, Veruska levantou-se, caminhou lentamente até a banheira e sentou-se, mergulhando até que a água cobrisse parte de seus ombros. Estendeu a mão e pegou a lâmina que havia colocado ao lado da saboneteira. O espelho de cristal refletia da posição na qual se encontrava a banheira, um quadro com a gravura de um casal sentado em um banco à beira de uma praia, já idosos, mas abraçados. Era assim que Veruska queria envelhecer.
Segurando a lâmina com a mão esquerda, pois Veruska era destra e teve receios de não ter a habilidade necessária para usá-la com a outra mão quando fosse necessário, selou seu destino com um corte firme e profundo em seu pulso direito, sentindo uma dor que, entretanto não se comparava com as chagas abertas em seu coração e sua alma. Enquanto lágrimas corriam pelo seu rosto e o pranto em soluço tornava difícil a execução de seu derradeiro ato, com dificuldade conseguiu segurar a lâmina e desferir o segundo corte, dessa vez em seu pulso esquerdo. A água turva e carmim, contrastava com as cristalinas lágrimas que percorriam seu rosto, contornando seu nariz perfeito e seus lábios, escorrendo pelo seu queixo e se perdendo misturadas pelas ondas que seus soluços provocavam na água. Veruska viveu à espera de um grande amor que nunca chegara, nunca conhecera e naquele momento, entre pranto e sofrimento, marcou seus pulsos com sua desistência.

No teatro, enquanto Veruska silenciosamente se despedia, Raul sorria e desdenhava, dizendo à mulher ao seu lado que aquela música, que naquele instante tocava era a preferida de sua "amada".

domingo, 19 de janeiro de 2014

Por quanto tempo? ... para sempre!

(ouça enquanto lê)...  https://www.youtube.com/watch?v=vmilF705qXE

...já passava das 9:00 da manhã quando ele acordou, espreguiçou, levantou-se preguiçosamente, abriu a janela, pousou a tristeza em seus olhos no horizonte e suspirou brevemente. Algumas vezes aquela dorzinha no peito chegava sem aviso prévio comprimindo o peito, encurtando o fôlego e surgia uma agonia que força alguma era capaz de extirpar do peito. Apressou-se em aprontar-se, foi à feira, comprou frutas e legumes frescos, acendeu incensos, colocou a mesa, saiu para exercitar-se um pouco ao ar livre numa tentativa de amenizar aquela ansiedade ou seja lá qual for o adjetivo que melhor caracteriza tudo que sentia. 

Algumas pessoas são eternas nas vidas de outras, pensou. Ela é eterna na sua, não importando quantos anos passem. Basta olhar em seus olhos doces, castanhos, brilhantes, para perceber que ele ainda habita aquele lugar e que essa dor é recíproca, afinal, a vida escolheu que se distanciassem, não eles. Enquanto caminhava, mentalmente preparava o cardápio que a agradava. Sim, ele conhecia todos seus gostos, inclusive a temperatura da água para servir-lhe o café e a quantidade de gotas de adoçante que deveria usar. Adorava buscar receitas diferentes para agradar-lhe o paladar e vê-la sorrir. Sim, sorrir... e como ainda ama aquele sorriso, que ao brotar, torna ainda menores aqueles olhos de alcaçuz. 

Retornou para casa, tomou uma ducha, deixando que a água o percorresse da cabeça aos pés, lambendo sua pele e refrescando sua alma. A cada minuto que passava, seu coração acelerava na expectativa de encontrá-la. 

Vivem, ambos, vidas diferentes, independentes, livres, tentando reunir os pedacinhos de seus sentimentos e compor o mosaico no qual suas vidas se transformaram. Os dias passavam morosos e ainda há muito a descobrir. Mas não importa agora, pois ela estava vindo, para passar mais um dia a seu lado, torná-lo feliz como somente ela sabia como fazê-lo, cuidar um do outro como faziam com perfeição e se amarem como sempre o fizeram. 

Não importa que rumo suas vidas venham tomar, nem quantas pessoas apareçam em seus caminhos, pois ambos sabem que nada nem ninguém vai afastá-los, custe o tempo que custar. Seriam assim... eternamente... amantes, amados, pois havia entre eles muito mais que amor, havia uma união de almas.

Ele foi até a cozinha, checou o forno que assava o prato que preparara especialmente para ela, sorriu e aguardou sua ligação para que pudesse abrir o portão da garagem... 













quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Don´t forget me... I beg...

Era noite de inverno, nos primeiros dias, que traziam consigo os primeiros flocos de neve. Ele acessou a rede social para conversar com seus amigos e, crítico como era, acabou palpitando em um comentário no qual ele nem havia sido chamado, mas envolvia, naturalmente, pessoas de seu conhecimento. Foi uma brincadeira, claro, sem a menor intenção de magoar ou corrigir ninguém. 

Ela, a autora do comentário, respondeu diretamente a ele e iniciaram um diálogo a partir de então. Ele morava em Sevilha, ela em Bruxelas. 

Naquele fim de noite, ele havia chegado em casa mais cedo para evitar o pesado trânsito que se formava devido às nevascas no final do dia. O céu, gris, espalhava flocos que desciam numa coreografia ébria até atingir o solo. Ele tirou os sapatos molhados e calçou um dos pares que ficavam à disposição já na entrada de casa, tomou seu banho, fez seu desjejum e sentou-se para terminar a leitura de seu autor favorito, Gabriel García Marquez, do qual ele degustava sua obra "Cem anos de solidão". Leu mais alguns capítulos e foi checar seus e-mails e sua rede social. Foi então que deparou com aquele post que era, em verdade, um post despretensioso, mas abelhudo que era, ele resolveu intervir com suas brincadeiras. Nesse único intuito.

Ela aparentava 25, não mais que 27 anos de idade, cabelos levemente cacheados, castanhos claros com dourado, olhos castanhos escuros, vivos como duas pérolas negras, esbelta, mãos pequenas e graciosas e boca perfeita de lábios não muito carnudos, dentes claros, pequenos e especialmente sedutora essa boca em que ela ostentava (e sabia bem) um esboço de sorriso tal qual retratava Michelângelo, que dizia sem dizer e beijava sem tocar os meus.

Assim que ele comentou, alguns minutos depois ela se manifestou e ali começaram a se conhecer. Se apresentaram e conversaram animadamente. A madrugada foi pouca para tantos assuntos. A empatia e afinidades eram imensas e comuns. Não demorou para que ficassem íntimos.

Ambos solteiros, começaram a trocar impressões a respeito da vida e relacionamentos. Ele era romântico, atencioso, dedicado, não demorou muito para que ela percebesse isso. Ela era doce, inteligente, sagaz, quente como um vulcão em erupção e ele pura lava. Passados três dias que se conheceram já estavam íntimos o suficiente para que conversassem sobre suas vidas. Ela certamente mexera com ele e vice-versa. Ela lhe contou que estava conhecendo uma pessoa, há uns 10 dias. Ele sentiu-se atraído por ela e foi recíproco, mas isso os deixaram confusos. Principalmente a ela, que interessada em outra pessoa, agora se via sendo conquistada por um outro, mas se essa brecha existe é porque o outro ainda não a completava integralmente.

Bruxelas é distante de Sevilha, sem dúvida, mas quando se quer algo verdadeiramente, a distância passa a ser um mero detalhe. Ambos podem se empenhar para eliminar a distância, com perdas de ambos os lados claro, mas com ganhos muito maiores que as perdas. Ambos tem que ceder em benefício de um ganho maior. Ele, prolixo, acabou expressando-se mal e a entristeceu. Ele não foi compreendido, quando quis lhe mostrar que não estava se comparando ao rapaz que ela estava conhecendo, mas sim, falando de suas próprias qualidades, que ela mesma viria a conhecer e comprovar que não são apenas palavras jogadas ao vento. 

Ela está em silêncio desde então.
Ele está com o coração em aflição.

Ela aguarda sua mente se reequilibrar.
Ele só quer vê-la novamente sorrir.

Ela não sabe o que dizer.
Ele já disse: "quero você!".