NAS SOMBRAS DA PONTE
O vento frio cortava sua pele como
navalha naquela madrugada de junho. Karine caminhava a passos lentos pelo
beiral da ponte que ligava as cidades Colinas da Primavera e Recanto Bonito.
Aproximou-se, hesitante, da borda. Olhou novamente aquelas bochechas rosadas
daquele anjinho que, indiferente,
dormia sem se perturbar com a lágrima que caiu sobre seu aveludado rosto.
Karine era uma linda morena de pele
achocolatada, que em seus vinte e oito anos aparentava dezessete. Seus olhos
castanhos claros contrastavam agressivamente com seus cabelos de ébano e seus
lábios de carmim que acentuavam as salientes maçãs de seu rosto que exalavam
sua beleza e sensualidade juvenil.
Waldir surgiu no momento exato em
que Karine mais necessitava de amparo, carinho, atenção e braços que pudessem
lhe fazer sentir-se ancorada em um porto seguro. Waldir era um homem de 32
anos, olhos negros e brilhantes, sorriso atraente e barba por fazer que fez
brilhar os olhos e inundou de fantasias os pensamentos de Karine assim que o
conheceu.
De família simples, Karine era a
caçula dos quatro irmãos que se acotovelavam em um barracão de três cômodos com
vazamentos na pia, colchões de espuma sem revestimento, espalhados pelo chão,
cortina de chitão separando os ambientes, uma geladeira que mais roncava do que
gelava, fogão de quatro bocas das quais somente duas funcionavam, sofá com
encosto e assentos rasgados e na despensa, farinha de trigo, maisena, arroz e
macarrão.
Karine vestiu seu melhor vestido, um
tubinho curto, de malha preta, acima do joelho, que expunha suas coxas grossas
e perfeitas, que ganhara de presente na última faxina que fizera. Calçou suas
sandálias de couro surradas, descascadas no bico e faltando algumas lantejoulas
que as decoravam. O batom vermelho acentuava de maneira obscena aqueles
encantadores lábios e o rímel exagerado realçava ainda mais aqueles olhos de
luar de agosto. Guardou no sutiã, juntamente, o bilhete amarrotado contendo o endereço
da entrevista de emprego e o dinheiro da passagem de ônibus.
Waldir era gerente geral de uma
grande empresa do ramo de transporte de cargas e gostava de entrevistar os
candidatos às diversas vagas que ocasionalmente sua empresa oferecia. Naquele
dia, entrevistaria as candidatas a copeira que trabalharia no andar de sua
sala, preparando e servindo café aos diversos clientes que ali se reuniam com
Waldir semanalmente.
Karine desceu apressada do ônibus,
ajeitou seus cabelos, retocou o batom e dirigiu-se até o prédio onde seria entrevistada.
Ainda no elevador, olhou-se no espelho, checando suas costas, se sua calcinha
estava marcando seu vestido e desceu no oitavo andar espalhando pelo corredor
seu perfume de aroma doce comprado de um camelô no terminal rodoviário.
Quando Waldir solicitou que entrasse
a próxima candidata, não conseguiu fechar a boca enquanto Karine se aproximava
de olhos fixos nos seus, passos firmes cada um diante do outro como aprendera
vendo desfiles de moda na televisão. Seus cabelos soltos, longos, baloiçavam como
as ondas do mar qual pêndulo nas mãos de um hipnotizador que sugeria ao incauto
coração de Waldir que se apressasse em suas batidas até então comportadas.
Naquele final de dia houve
comemoração com direito a pipoca, guaraná e os deliciosos bolinhos de chuva
para celebrar a contratação de Karine que receberia um salário mínimo,
vale-transporte, ticket refeição e uma gratificação de cinco por cento caso não
se atrase nenhum dia a cada mês.
Dois anos se passaram céleres e
Junho novamente chegou trazendo seus dias de brisas frescas e noites
congelantes que Karine facilmente contornava nos braços de Waldir. Ainda estava
presente em suas lembranças quando dois meses após sua contratação viu-se refém
dos galanteios de Waldir. Naquela noite de sexta-feira, Waldir, já impotente
contra os ímpetos de desejo e paixão, a convidara para que ficasse um pouco
mais além do expediente pois tinha alguns a tratar com Karine.
Waldir fechou as persianas de sua
sala que faziam vista à rua e quando Karine bateu à porta, apressou-se para
abri-la. Karine, sem suspeitar das intenções de Waldir ainda acreditava que
fora chamada para algum assunto de cunho profissional, ideia essa que
rapidamente colocou em xeque quando gentilmente Waldir a cumprimentou segurando
e beijando sua mão. Karine sempre observava Waldir dissimuladamente e sem
dúvida não poderia negar que também sentia uma certa atração por aquele homem
sempre gentil e educado.
A conversa, ali mesmo no escritório,
não tardou na companhia de um bom vinho que Waldir havia precavidamente
comprado. Quando Karine tentou recobrar o domínio da situação, seus braços já
envolviam o pescoço de Waldir enquanto suas mãos a seguravam firmes pelo
quadril, puxando-a de encontro a seu corpo e beijou aqueles lábios
agressivamente macios que em momento algum se debateram ao contrário.
Os documentos sobre a mesa de
trabalho de Waldir, seu notebook e os demais utensílios de escritório voaram
pela sala caindo silenciosamente sobre o tapete, contrastando com os sussurros
abafados de Karine quando Waldir a jogou sobre a mesa e arrancou os botões de
sua saia de uniforme para que suas mãos subissem lentamente levando consigo
retalhos da meia-calça enquanto suas unhas delicadamente lhe arranhavam a pele,
sem dor e sua boca vertiginosamente mergulhava naquele colo entre aqueles
firmes e volumosos seios.
Os encontros se repetiram por várias
vezes também no palco do apartamento de Waldir.
Setembro chegou trazendo cores e
perfumes e um brilho especial aos olhos de Karine. Coração disparado, foi até a
farmácia naquela tarde de domingo e comprou um teste de gravidez que, mais
tarde, acusara duas linhas azuis. Karine saiu correndo da farmácia e foi direto
ao apartamento de Waldir contar-lhe a boa nova. Waldir abriu a porta, sem
entender o motivo de tanta euforia de Karine quando a mesma pulou em seus
braços e confessou aos seus ouvidos:
-
Meu amor, você será papai!! – disse, engasgando-se em soluços.
- O
que? – assustou-se Waldir – Você ficou louca? Não havia me dito que estava
usando anticoncepcional ?
-
Não sei o que houve meu amor, eu juro! Comecei a sentir tonturas e náuseas e
como “não veio” esse mês, resolvi fazer o teste
-
Tudo bem Karine, vamos não se preocupe, vamos cuidar disso, eu conheço uma
clínica de um médico amigo que pode cuidar discretamente dessa situação.
Ninguém no escritório saberá que um dia você engravidou.
-
Não! Waldir, não! Não podemos fazer isso, é nosso bebê, nosso filho, seu filho,
não quero fazer isso.
-
Isso então será problema seu Karine, eu não pretendo assumir nenhuma paternidade
nem tampouco cuidar dessa criança. Não suporto crianças e além do mais, não
somos casados nem temos compromisso sério. Se você quiser ser mãe, será por sua
conta própria e terá que arcar com tudo sozinha.
Waldir, dois meses após a notícia da
paternidade, abandonou o emprego e mudou-se de cidade sem deixar rastros.
Karine, mesmo grávida, foi demitida pelo novo gerente no mês seguinte e
aconselhada a reclamar seus direitos na justiça.
Sua família não a abandonou, porém,
grávida, não conseguira emprego algum nos meses seguintes. Seus irmãos, todos
desempregados. Karine, à noite, não sabia se os movimentos em seu ventre eram
do bebê ou de fome. Conseguiu junto à assistente social de seu bairro, alguns
pacotes de fraldas e um enxoval com alguns pares de roupas de recém-nascido.
O vento frio cortava sua pele como
navalha naquela madrugada de junho. Embrulhado em uma manta que ganhara de uma
colega de quarto na maternidade pública, Karine contemplava seu desnutrido,
minúsculo e indefeso rebento que nascera há alguns dias. Karine não era
lactante e o alimentava com leite e maisena que ganhava de seus vizinhos, porém
nem todos os dias. Augusto, como se chamaria se fosse registrado, mas Karine
não poderia trazer ao mundo mais uma alma para somar à miséria com que vivia
junto a sua família.
As luzes da cidade pareciam cintilar
como árvore de natal, distantes, perdidas no horizonte do rio que corria
silenciosamente sob a ponte. Karine descobriu aquele rostinho rosado, mais uma
vez, fazendo-o espreguiçar-se e balbuciar um choro que mais se assemelhava a
uma súplica e novamente adormeceu, sem perceber o momento em que Karine o
beijou suavemente na testa, apertou-o contra seu peito amargurado, e saltou na
escuridão da noite, tocando a água no segundo seguinte em que sua quente
lágrima caía sobre aquele rosto inocente.
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