segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Pela última vez...

Sunset Village era uma cidade pequena, muito pequena, com pouco mais de quatro mil habitantes. O relógio ainda marcava pouco além das oito de uma manhã ensolarada e aquele calor insuportável já causava certo incômodo. À medida que o trem se aproximava da estação as lembranças inundavam seus pensamentos e sua alma como um enxame. O tempo havia parado para aquela cidade. Treze anos se passaram e praticamente nada havia mudado. A igreja continuava a mesma, necessitando de reparos, o centro comunitário onde aconteciam as quermesses implorava uma reforma urgente. O coreto da praça já não possuía mais os bancos que acomodavam os casais nas noites de romance em que a lua gentilmente derramava sua luz argentina revelando silhuetas abraçadas de lábios colados.

Laura deixara subitamente aquela cidade prometendo a si mesma que jamais retornaria. E não o faria se não houvesse um motivo mais forte que seu ódio e desprezo por algumas pessoas daquele lugar. Esse motivo tinha nome, endereço, carteira de identidade e a fazia suspirar desde que se conheceram mas os dramas familiares os empurraram para bem longe e a distância separou fisicamente o que a vontade de ambos unira há anos. À medida que o trem se aproximava da estação as lembranças invadiam lhe o coração e causavam-lhe uma dor sufocante. O trem foi parando lentamente mas, em contrapartida, seu coração acelerava. O barulho estridente das rodas freando sobre os trilhos lhe trouxera momentaneamente à realidade. Ajeitou o vestido, os cabelos, retocou o batom, levantou-se, pegou a nécessaire e a pequena bolsa de viagem pois não pretendia demorar-se. Desceu lentamente, olhou à sua volta, ninguém a aguardava, aliás, ninguém sabia de sua vinda.
Heitor era alegre, inteligente, divertido, sempre fora cheio de vida, adorava praticar esportes, principalmente os radicais, adorava ler, escrever, era um aficionado por música e geralmente se comunicava através delas. Era muito estudioso e se interessava por praticamente tudo que fosse cultural e amava aprender, mesmo que nenhuma relação houvesse com sua profissão. Tinha olhos brilhantes, cheios de vida, castanhos claros como o mel e um sorriso que dançava em seus lábios durante todo o dia, mesmo se sangrasse em chagas seu coração, Heitor sorria. Há quase quatro anos Heitor perdera seu pai numa disputa contra o câncer. Há seis meses, uma profunda tristeza se apoderou de Heitor, vinda do nada, como uma nuvem sombria que cobria seus dias, silenciava suas brincadeiras e arqueavam levemente aqueles lábios que sempre sorriam e agora não mais. Há seis meses, insistente, constante, inescrupulosa, a depressão rondava Heitor. Há seis meses, escondendo de todos, Heitor recebera o mesmo diagnóstico que seu pai. Não se entregou, mas decidiu lutar sozinho, sem preocupar as pessoas à sua volta. Se a morte vem suave como um véu, que o alcance assim, sem alardes, sem infligir sofrimento aos que o querem bem.
Laura apertou entre os dedos de sua mão que suava frio, aquele pedaço de papel... um telegrama que dizia o seguinte: "Laura vg venha depressa ver Heitor pt está muito mal vg deprimido vg em estado terminal pelo câncer embora seja indolor como o que acometeu seu pai pt certamente ele gostara muito de te ver novamente pt o endereço dele eh o mesmo pt". Era incrível como um simples pedaço de papel transformou sua vida repentinamente. Não seria fácil, sabia, contemplá-lo sem que as emoções a dominassem. Intimamente ela sabia que algo estava errado. Conversavam quase todos os dias mas há algumas semanas Laura o percebera triste. O telegrama só veio confirmar suas suspeitas de que algo não estava bem.
Heitor morava próximo, aliás, nada era longe naquela cidade tão minúscula. Embora a cidade contasse com serviços de táxi Laura decidira caminhar até a casa de Heitor. Passou diante de um prédio onde houvera uma sorveteria chamada "Beijo Frio" na qual passeavam nas tardes de domingo para saborearem um sundae, banana split ou milk shake e também fora palco de beijos ardentes e demorados. A floricultura ainda permanecia aberta e vendia os mesmos arranjos de treze anos com pouca inovação. A pizzaria onde frequentavam após as sessões de cinema e o teatro sempre em reformas. Era mais um dia para Heitor, que continuava dormindo muito tarde pois o sono não chegava. Ligava a TV, passeava pelos canais, não encontrava nada que lhe interessava e então desistia da TV e lia um livro. Arrependia-se no dia seguinte quando o despertador lhe sacodia mas todos os dias eram assim. Tomava seu café e saía para trabalhar. Heitor emagrecia. A doença o impedia de ganhar peso, drenava suas forças e o fragilizava física e emocionalmente atirando-o numa crise depressiva sem precedentes.
A casa era aquela. Passou por reformas, mudou a fachada, mas era aquela. Os traços arquitetônicos não mudaram. Laura deteve-se por alguns instantes diante do portão, recordou todas as vezes que ali chegavam, ele abria o portão, entravam de mãos dadas ou abraçados, ele com seu jeito de menino lhe fazendo cócegas nas costelas e passando correndo à sua frente, até o jardim, onde colhia uma flor qualquer, estendia a mão e a colocava em seus cabelos. Ele a tratava como uma Rainha e ela se sentia a própria em sua vida. Como Laura chegara mais cedo, sabia que ele trabalhava até o final do dia, foi caminhar pela vizinhança, resgatando na memória os bons momentos vividos e tantos outros que deixara de viver. Laura fez escolhas erradas em relação a Heitor e agora, separados, percebia isso. A notícia da doença de Heitor a pegara de surpresa e todo esse peso da distância e de seu rompimento com ele parecia um elefante caminhando sobre seu coração, esmagando-o sem piedade.
Laura percebera naquele instante o quanto valorizou pouco a relação que teve com Heitor. A ideia do "nunca mais" a aterrorizava. A morte não era uma ideia bem aceita por ela. O "nunca" era tempo demais e Laura sempre que se deparava com essa grandeza, tentava colocar um limite ao "nunca", refutando a ideia de que isso era eterno, que jamais sentiria novamente aqueles lábios doces colados aos seus, não se perderia na coloração de mel de seus olhos, não sentiria aquela pele cheirosa e macia em contato com a sua, não teria aquelas mãos que a seguravam firmes e ao mesmo tempo eram tão cariciosas no trato com a geografia de seu corpo. Jamais poderia novamente deitar seu rosto em seu peito e adormecer em seus braços vendo o dia raiar e ser acordada com um beijo carinhoso e café na cama, nem ajudá-la na tradução dos seus textos técnicos em inglês ou salvá-la nas suas dúvidas com a tecnologia, nem preparar sua salada preferida, tampouco amá-la como somente ele sabia fazê-lo, enfim, a palavra "nunca" a apavorava, afinal, sua alma gêmea estava partindo e ela não podia fazer nada para impedir isso.
Quando ela o avistou chegando em casa, seus olhos ainda estavam vermelhos e lacrimejando. Todo o amor que ele lhe dedicou deveria ter sido o bastante, mas não foi e agora ela teria que encarar a dura realidade. Caminhou lentamente ao seu encontro, parou diante do portão e deixou que ele se aproximasse. De longe ela viu aquele sorriso aberto estampado em seu rosto, seus olhos brilharam como faróis quando a viu e seus braços a envolveram naquele abraço de Urso apertado e que a acolhia por completo. Talvez fosse o último... Laura não sabia... quem sabe? a vida não marca a hora da despedida, portanto Laura queria viver intensamente aqueles momentos ao seu lado, pois no dia seguinte poderia ser impossível sentir todo aquele amor que mesmo diante da decisão dela de terminar o relacionamento, jamais diminuíra ou enfraquecera. Aquela poderia ser a última tarde, a última noite, o último beijo, a última vez.

3 comentários:

  1. So sad...:(
    We have to cherish each moment of our life because the future is unknown, all we have is the present, like a blink of an eye....Live each day with joy and courage!

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  2. Como sempre, suas produções são envolventes e cheias de uma amor que é intenso mesmo na distância dos corpos que se amam.

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  3. Parabéns...linda. Mas porém triste!!!

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