quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Dia de finados


Ele chegou em casa às 20:00 mas nem quis acender as luzes. Preferiu abrir a cortina da sala de estar e deixar a luz natural daquele inicio de noite espalhar a penumbra pela sala escura. Pegou a garrafa de whisky no bar e serviu-se colocando duas doses e alguns cubos de gelo de água de coco.

Sentou-se numa poltrona no canto da sala e ligou o abajour. A tímida luminosidade era suficiente para que pudesse ler seus textos antigos e olhar seus álbuns de fotografias deixados pela sua mãe, que havia falecido há dois meses. Quanta saudade ele sentia de seu colo, seus afagos, seus mimos e carinhos. Sem dúvida alguma ele não foi um filho perfeito mas desde que seu pai falecera, era ele quem cuidava de todas as necessidades dela, desde a alimentação, medicamentos, consultas, internações. Não, certamente ele não foi o filho mais dedicado quanto deveria ser, mas, quem está do lado de fora, talvez o julgasse dessa maneira, porém não era fácil trabalhar o dia todo e encontrar tempo em sua semana escassa para levá-la ao médico e durante esse ano corrente, passar noites e dias nos hospitais para cuidar e servir-lhe de companhia em inúmeras internações.

Várias fotografias o arremessaram ao passado. Toda uma vida ao lado dela, excetuando-se os anos em que estivera fora, para trabalhos ou estudos. Aquele "boa sorte meu filho" que com todo amor ela dizia todas as noites antes de dormir. Algumas vezes o estresse do cotidiano nos leva a fazer coisas insensatas e das quais nos arrependemos em seguida. Ele se arrependia de várias situações, como das vezes que ele não atendia suas ligações porque já estava cansado, estressado com motivos diversos, mas também porque sabia que ela estava bem e queria apenas conversar, mas ele não estava sempre disposto a conversar. Pensem o que quiserem pensar, mas isso em momento algum diminuiu o amor que ele sentia por ela.

Ele levantou-se e foi até o piano, colocou o copo de lado e tocou, entre lágrimas, somewhere in time de um de seus compositores favoritos John Barry (https://www.youtube.com/watch?v=_6_5JLcii3A) e nota, cada acorde soava como uma gota de mel em suas lembranças. 

Ela partira um dia após ele tê-la visto pela última vez. Como disse Einstein, o tempo é relativo e embora essa conotação não se aplique aos estudos de Einstein, é notável que um dia em nossas vidas pode não fazer muita diferença durante toda ela, mas ele não pediria todo um dia ao lado dela uma vez mais... apenas um minuto... para que a na eternidade desses sessenta segundos, suas mãos pudessem se tocar, colar o rosto no rosto dela, beijar sua face, olhar em seus olhos e dizer: Obrigado mãe!

Ele levantou-se do piano, apagou o abajour e com a visão translúcida, repousou seu rosto no travesseiro com o pensamento em sua mãe. Talvez Deus, em sua misericórdia, permitisse que ele sonhasse com ela e pudesse vive, naquela noite, por momentos, aquela realidade de nossas almas, a doce convivência com ela.

Que Deus a tenha.


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