(Caro leitor. Se
ainda não leu os contos “Ah! Veruska!” e na sequência “Raul”, leia-os por
gentileza, para melhor compreensão desse conto. Obrigado).
A cena presenciada, de Raul nos braços de outra, ainda remexia seus
pensamentos como as lavas de um vulcão prestes a despejar sua fúria sobre
pecadores e inocentes à sua volta. Veruska, a caminho de casa, sentia o coração
palpitar tão forte que parecia saltar pela boca. Seus cabelos de fios sedosos e
finos, grudavam em seu rosto molhado pelo pranto. Veruska não saberia dizer
como conseguiu chegar em casa. Dirigia seu veículo automaticamente durante o
trajeto de volta e sequer percebeu que fizera caminhos até mesmo
desnecessários.
Veruska entrou em casa e
imediatamente pegou um bloco de anotações e começou a escrever:
“Pai, eu sei que nesse primeiro
instante você vai me condenar pelo que farei. Sei o quanto dedicou sua vida
toda e concentrou seus esforços e inúmeros sacrifícios para me educar e criar.
Minhas mais remotas lembranças, pai, começam quando menininha, aos cinco anos
de idade você me carregava no ombro, fingindo ser um cavalinho trotando comigo
pela casa. Eu revia as fotos quase todos os dias, observando teu sorriso e tua
felicidade em cada momento que nos fotografou. Ainda guardo os vestidinhos e os
sapatinhos brancos que comprava para mim e da princesinha que me tornei quando
criança só para teus olhos e para alegrar teu coração. Revi as fotos da festa
de aniversário do meu primeiro aninho e era evidente a felicidade estampada em
teu rosto a me segurar no colo como se ostentasse um troféu de toda sua vida.
Pai... ser tua única filha
jamais tirou o privilégio de sentir que sou amada porque sou a única, mas sim
porque eu realmente me sentia amada e mimada por completo. Não sei como será “do
outro lado”, tenho medo sim, mas minha decisão já está tomada, não há como
recuar. Dizem que “de lá” podemos observar as pessoas aqui e estarei sempre ao
teu lado, embora não poderei mais sentir teu abraço, nem tuas mãos a me
acariciar os cabelos fazendo cafuné quando te visitava só para me deitar em teu
colo e ser tua filhinha carente desse pai amoroso. Mas não deve doer mais que
ter que deixá-lo e causar-lhe essa dor que o acompanhará por toda tua vida.
Não queria ser fraca, pai...
você me ensinou a ser sempre forte, mas algumas dessas lições não aprendi.
Deveria ser forte, mandar Raul embora de minha vida e continuá-la mas não
conseguiria viver com alguns fatos sem que os mesmos me roubem o sossego,
escravizem minha paz e machuquem meu coração. O natal se aproxima e eu me
recordo de quando você esperava que eu dormisse para colocar meu presente sob o
travesseiro ou ao lado de minha cama e eu sempre lutava contra o sono, na
esperança de ver papai Noel fazê-lo, mas o bom velhinho nunca aparecia e mais
tarde descobri que o responsável por deixar meus presentes era uma pessoa que
eu amava infinitamente mais que o próprio velhinho de barbas brancas e gorro
vermelho.
Quando comecei a estudar,
lembro-me bem, doía muito mais em ti deixar-me ali na escola sozinha, tanto que
sempre me acompanhava até a sala de aula e permanecia ali comigo por alguns
minutos até que a aula começasse e tua felicidade era evidente quando me
buscava ao final da manhã. Quando me tornei adolescente e minhas exigências
foram aumentando e achava que já era mocinha, jamais ouvi de ti qualquer
repreensão, mas ao teu modo, me fazia entender que ainda não era tão
crescidinha quanto pensava ser e com teu carinho me educava dentro de meu
entendimento e maturidade. Não me recordo quantas vezes deixavas de comprar
coisas importantes para ti e comprava o que eu lhe pedia, muitas das vezes sem
que tivesse o dinheiro necessário mas sempre dava um jeitinho de realizar meus
mimos dentro de meu merecimento. Lembra-te das histórias que contavas para eu
dormir, pai? Sempre traziam uma lição de vida ao final, exceto aquelas que
terminavam com o “monstrinho” que poderia estar sob a cama ou no armário e que
sempre culminavam comigo carregando meu travesseiro no meio da noite, subindo pelas
tuas costas e me alojando ao teu lado em tua cama, com medo, acordava-o e não o
deixava mais dormir antes de mim.
Eu me sentia a dona do mundo ao
teu lado, pai... quando dengosamente eu sentia fome e sempre queria algo que
não estivesse perto de casa, mas geralmente no shopping... a escolha era apenas
um pretexto para que saíssemos e ficássemos mais tempo juntos. É tão importante
esses momentos juntos, mesmo que uma vez por semana ou a cada duas semanas, mas
que existam na maior frequência possível, porque, um dia, algum de nós não
estaremos mais por aqui... em nosso caso, eu não estarei, mas sei que a saudade
ficará e estou certa que deveríamos (eu deveria) ter aproveitado muito mais a
vida ao teu lado.
Não sofra, pai.
Sei que é pedir muito que não
sofra, mas foi minha escolha. Quando perdemos nosso reflexo no espelho da vida,
não nos enxergamos mais, mesmo diante de nosso eu, nossa identidade desaparece
em meio à névoa de nosso orgulho, desespero e sem dúvida alguma, fraqueza. Mas
como foi difícil ser eu mesma diante de tantas decepções. Muitos me julgarão
fraca, outros louca, outros desejarão que tivesse feito o que fiz, com Raul e
muitos outros me condenarão sem sequer me conhecerem. Estarei contigo, pai, em
cada entardecer, a cada vez que seu celular tocar e aparecer nossa foto
abraçados (sempre foi essa que esteve ali), a cada vez que tocar a campainha de
casa e a pessoa do outro lado não pular em teu pescoço, sorridente, ainda
assim, não sofra pai.
Minha vida amorosa foi uma
sucessão de fracassos, mas tive o melhor pai (e mãe) que poderia ter. Nesse
aspecto minha vida foi maravilhosa. Lamento que não seja tudo como desejamos
quando crescemos e nos tornamos adultos. Na fase adulta, quase tudo o que realmente
importa, cede lugar às coisas de menor importância e naufragamos nos caprichos,
vaidades e egoísmos e nos esquecemos do colo, da magia, do aconchego, do
abraço, da ternura e do amor daqueles que nos querem bem. A pureza do coração,
contaminada pelas paixões abre brechas para o veneno que corre em minhas veias.
Te amo pai.
Procure ser feliz, apesar de
tudo. Nos encontraremos em breve, acredito nisso. E embora por muitas noites,
as lembrança turvem teus olhos e o coração ameace desistir, não o faça. Não
siga meus passos, pois não estarei onde me procurares.
Sua filha, Veruska.”
Veruska dobrou cuidadosamente a
carta, colocou-a num envelope endereçado a teu pai, caminhou até a caixa de
correios mais próxima e por alguns instantes, pensativa, fixou seu olhar na
direção daquela rua onde morava. Já não havia mais movimento algum àquela hora,
somente as folhas secas sendo arrastadas pelo vento e a tênue iluminação da rua
que douravam ainda mais seus olhos, vermelhos e inchados de chorar. Depositou a carta, virou-se em direção à sua
casa entrou em casa e trancou definitivamente a porta.
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