terça-feira, 22 de abril de 2014

A carta


                (Caro leitor. Se ainda não leu os contos “Ah! Veruska!” e na sequência “Raul”, leia-os por gentileza, para melhor compreensão desse conto. Obrigado).
A cena presenciada, de Raul nos braços de outra, ainda remexia seus pensamentos como as lavas de um vulcão prestes a despejar sua fúria sobre pecadores e inocentes à sua volta. Veruska, a caminho de casa, sentia o coração palpitar tão forte que parecia saltar pela boca. Seus cabelos de fios sedosos e finos, grudavam em seu rosto molhado pelo pranto. Veruska não saberia dizer como conseguiu chegar em casa. Dirigia seu veículo automaticamente durante o trajeto de volta e sequer percebeu que fizera caminhos até mesmo desnecessários.
                Veruska entrou em casa e imediatamente pegou um bloco de anotações e começou a escrever:
                “Pai, eu sei que nesse primeiro instante você vai me condenar pelo que farei. Sei o quanto dedicou sua vida toda e concentrou seus esforços e inúmeros sacrifícios para me educar e criar. Minhas mais remotas lembranças, pai, começam quando menininha, aos cinco anos de idade você me carregava no ombro, fingindo ser um cavalinho trotando comigo pela casa. Eu revia as fotos quase todos os dias, observando teu sorriso e tua felicidade em cada momento que nos fotografou. Ainda guardo os vestidinhos e os sapatinhos brancos que comprava para mim e da princesinha que me tornei quando criança só para teus olhos e para alegrar teu coração. Revi as fotos da festa de aniversário do meu primeiro aninho e era evidente a felicidade estampada em teu rosto a me segurar no colo como se ostentasse um troféu de toda sua vida.
                Pai... ser tua única filha jamais tirou o privilégio de sentir que sou amada porque sou a única, mas sim porque eu realmente me sentia amada e mimada por completo. Não sei como será “do outro lado”, tenho medo sim, mas minha decisão já está tomada, não há como recuar. Dizem que “de lá” podemos observar as pessoas aqui e estarei sempre ao teu lado, embora não poderei mais sentir teu abraço, nem tuas mãos a me acariciar os cabelos fazendo cafuné quando te visitava só para me deitar em teu colo e ser tua filhinha carente desse pai amoroso. Mas não deve doer mais que ter que deixá-lo e causar-lhe essa dor que o acompanhará por toda tua vida.
                Não queria ser fraca, pai... você me ensinou a ser sempre forte, mas algumas dessas lições não aprendi. Deveria ser forte, mandar Raul embora de minha vida e continuá-la mas não conseguiria viver com alguns fatos sem que os mesmos me roubem o sossego, escravizem minha paz e machuquem meu coração. O natal se aproxima e eu me recordo de quando você esperava que eu dormisse para colocar meu presente sob o travesseiro ou ao lado de minha cama e eu sempre lutava contra o sono, na esperança de ver papai Noel fazê-lo, mas o bom velhinho nunca aparecia e mais tarde descobri que o responsável por deixar meus presentes era uma pessoa que eu amava infinitamente mais que o próprio velhinho de barbas brancas e gorro vermelho.
                Quando comecei a estudar, lembro-me bem, doía muito mais em ti deixar-me ali na escola sozinha, tanto que sempre me acompanhava até a sala de aula e permanecia ali comigo por alguns minutos até que a aula começasse e tua felicidade era evidente quando me buscava ao final da manhã. Quando me tornei adolescente e minhas exigências foram aumentando e achava que já era mocinha, jamais ouvi de ti qualquer repreensão, mas ao teu modo, me fazia entender que ainda não era tão crescidinha quanto pensava ser e com teu carinho me educava dentro de meu entendimento e maturidade. Não me recordo quantas vezes deixavas de comprar coisas importantes para ti e comprava o que eu lhe pedia, muitas das vezes sem que tivesse o dinheiro necessário mas sempre dava um jeitinho de realizar meus mimos dentro de meu merecimento. Lembra-te das histórias que contavas para eu dormir, pai? Sempre traziam uma lição de vida ao final, exceto aquelas que terminavam com o “monstrinho” que poderia estar sob a cama ou no armário e que sempre culminavam comigo carregando meu travesseiro no meio da noite, subindo pelas tuas costas e me alojando ao teu lado em tua cama, com medo, acordava-o e não o deixava mais dormir antes de mim.
                Eu me sentia a dona do mundo ao teu lado, pai... quando dengosamente eu sentia fome e sempre queria algo que não estivesse perto de casa, mas geralmente no shopping... a escolha era apenas um pretexto para que saíssemos e ficássemos mais tempo juntos. É tão importante esses momentos juntos, mesmo que uma vez por semana ou a cada duas semanas, mas que existam na maior frequência possível, porque, um dia, algum de nós não estaremos mais por aqui... em nosso caso, eu não estarei, mas sei que a saudade ficará e estou certa que deveríamos (eu deveria) ter aproveitado muito mais a vida ao teu lado.
                Não sofra, pai.
                Sei que é pedir muito que não sofra, mas foi minha escolha. Quando perdemos nosso reflexo no espelho da vida, não nos enxergamos mais, mesmo diante de nosso eu, nossa identidade desaparece em meio à névoa de nosso orgulho, desespero e sem dúvida alguma, fraqueza. Mas como foi difícil ser eu mesma diante de tantas decepções. Muitos me julgarão fraca, outros louca, outros desejarão que tivesse feito o que fiz, com Raul e muitos outros me condenarão sem sequer me conhecerem. Estarei contigo, pai, em cada entardecer, a cada vez que seu celular tocar e aparecer nossa foto abraçados (sempre foi essa que esteve ali), a cada vez que tocar a campainha de casa e a pessoa do outro lado não pular em teu pescoço, sorridente, ainda assim, não sofra pai.
                Minha vida amorosa foi uma sucessão de fracassos, mas tive o melhor pai (e mãe) que poderia ter. Nesse aspecto minha vida foi maravilhosa. Lamento que não seja tudo como desejamos quando crescemos e nos tornamos adultos. Na fase adulta, quase tudo o que realmente importa, cede lugar às coisas de menor importância e naufragamos nos caprichos, vaidades e egoísmos e nos esquecemos do colo, da magia, do aconchego, do abraço, da ternura e do amor daqueles que nos querem bem. A pureza do coração, contaminada pelas paixões abre brechas para o veneno que corre em minhas veias.
                Te amo pai.
                Procure ser feliz, apesar de tudo. Nos encontraremos em breve, acredito nisso. E embora por muitas noites, as lembrança turvem teus olhos e o coração ameace desistir, não o faça. Não siga meus passos, pois não estarei onde me procurares.
                Sua filha, Veruska.”

                Veruska dobrou cuidadosamente a carta, colocou-a num envelope endereçado a teu pai, caminhou até a caixa de correios mais próxima e por alguns instantes, pensativa, fixou seu olhar na direção daquela rua onde morava. Já não havia mais movimento algum àquela hora, somente as folhas secas sendo arrastadas pelo vento e a tênue iluminação da rua que douravam ainda mais seus olhos, vermelhos e inchados de chorar.  Depositou a carta, virou-se em direção à sua casa entrou em casa e trancou definitivamente a porta. 

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