sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Baú de decisões...

...ela subiu os degraus que a levavam ao sótão, lentamente, um por vez, destrancou a porta cuja fechadura ainda não havia sido trocada e a chave, pesada, estranha, mais parecida com um daqueles objetos medievais que ela via nos filmes, rangeu de forma estridente ao ser torcida. A porta, rangendo por falta de lubrificação nas dobradiças fez soar um estalo e ela a empurrou lentamente. Tentou acender uma lâmpada mas ela estava queimada. Foi tateando no escuro até encontrar um caminho pelo qual alcançasse a janela. Afastou a cortina de algodão, com três camadas de espessuras diferentes, sendo a última uma fina camada de renda e prendeu-a com uma fita de cetim que pendia das laterais de ambas as partes. A janela era de madeira com quadrantes de vidro transparentes embora a poeira dos anos não permitisse enxergar um palmo além daqueles vidros. Ela levantou a parte inferior da janela e uma brisa soprou levantando uma camada de poeira por todo lado. A claridade daquela manhã preencheu todo o recinto, dourando os móveis e objetos cobertos e protegidos por lençóis, desenhando um quadrado de luz no chão de madeira encerada e vermelha. Ela olhou à sua volta procurando pelo que foi ali buscar. O objeto, um pequeno baú de madeira estava guardado em um canto, não menos empoeirado. Ela o trouxe cuidadosamente para o local onde a luz era mais intensa, bem diante da janela, soprou a poeira sobre as duas presilhas que o fechavam.
     Num movimento quase ritual, ela abriu o baú lenta e cuidadosamente. Era um baú de madeira trabalhada, parecida com mogno, de fechaduras de metais inoxidáveis e forrado com uma flanela vermelha. Fotografias, recortes de jornais, cartas cuidadosamente dobradas, uma boneca de plástico vestida de noiva, bijouterias velhas, um vidro vazio de perfume (o primeiro que ela ganhara, um chanel 5, ainda na embalagem quadrada com a tampa preta de plástico) e uma caixa de música. Cada um daqueles objetos trazia um turbilhão de lembranças.
     Ela remexeu e olhou rapidamente os objetos no baú, tomou a caixa de música, branca, revestida de minúsculos cristais coloridos, torceu a borboleta que dava corda na caixinha e para seu espanto ela ainda funcionava perfeitamente. A música era "Danubio Azul" de Johann Strauss. Maneou a cabeça e colocou-a de lado. 
     Começou a olhar as fotografias ainda em preto e branco, tiradas na velha Polaroid de seu pai, já bastante amareladas pelo tempo. A primeira foto foto foi de um acampamento, onde conhecera Pablo, um menino de origem hispânica, olhos negros, cabelos cortados em franja, mais parecido com um curumim, porém seu sotaque que mixava o português com o espanhol a encantava, principalmente quando ele a chamava de "Hermosa", sem no entanto ela sequer imaginar o que significava e sempre que ela o perguntava, ele apenas sorria e respondia "vá procurar no dicionário". Coisa que ela nunca fez. 
     A segunda foto era de seus quinze anos. Ela se lembrou perfeitamente, embora a foto seja monocromática, de que usara um vestido amarelo-creme rodado, foi a primeira vez que fizera um penteado e usou uma maquiagem suave, o máximo que era permitido, naquela época, para sua idade. Não foi fácil vencer a timidez e convidar Pedro para dançarem a valsa. Ele havia se mudado para a sua rua há cinco meses. Nunca o vira namorando nenhuma garota do bairro, era sempre gentil e a cumprimentava também timidamente todas as vezes que se encontravam pela rua ou na mercearia onde costumavam comprar pães aos finais de tarde. Naquela noite de "debut" após dançarem, eles conversaram animadamente na companhia dos seus respectivos pais. Quando ela levantou-se para ir ao toalete, ele a seguiu e disfarçadamente disse a ela que o encontrasse no jardim em alguns minutos. Seria seu primeiro beijo na boca, se naquele momento ela não tivesse ponderado tantas coisas imponderáveis e inadequadas ao momento.
     Cada foto trazia à lembrança os momentos cruciais em que recuara diante de um possível romance. Medo, timidez, falta de tempo, ansiedade descontrolada, preciosismo, pudores exacerbados, enfim... sempre encontrava um motivo para adiar ou recuar até o momento em que realmente perdia as oportunidades e não mais era possível retroagir.
     Por fim ela retomou a caixinha de música, contemplou uma vez mais, demoradamente, aquele objeto, deu corda novamente para que a música repetisse, lembrou-se da última vez em que ela se encontrara com ele, dentro do carro, parados num posto de gasolina, próximos a sua casa, quando ela afagou seu rosto e disse que precisava de um tempo, para organizar sua vida que estava muito confusa. Não estipulou um prazo, não mensurou quanto tempo ela necessitaria para lhe dizer que sim ou não. Pediu que ele não se afastasse dela, mas não considerou o quanto seria difícil para ele conviver ao lado dela, desejando a cada dia, que ela olhasse em seus olhos e se entregasse a esse namoro. Ele não poderia prometer esperá-la indefinidamente. Coração é uma terra desconhecida e que, se não ocupada devidamente, pode ser arrebatada por outro que venha lhe ocupar integralmente. Ele disse que esperaria por ela até que seu coração fosse conquistado e embora ele não estivesse procurando quem quisesse ocupá-lo, mais cedo ou mais tarde apareceria alguém a quem ele não conseguiria resistir. Esse tempo está passando, ela sabe disso e como o perfume que não há mais no frasco de chanel, o vestido de noiva, amarelado, de sua boneca, as fotografias desbotadas, sua imagem pode desaparecer em definitivo do coraçao dele.
     Ela guardou novamente todos os objetos no baú, soprou a poeira, levou-o para baixo e deveria escolher entre mudar suas atitudes e buscar ser feliz, deixando que o tempo e um novo amor se encarregue de direcioná-la ou recuar novamente postergando oportunidades de ser feliz, dando corda na caixinha de música e delicadamente aprisionar seus sentimentos, coragem e atitudes para ser feliz ali dentro, ao som de "Danubio Azul". 

Um comentário:

  1. Por isso, hoje, me arrependo do que não fiz, e ainda sei que me arrependerei mais algumas vezes, pois a vida é feita de escolhas,mas não temo bola de cristal e nem visão do futuro, infelizmente isso é que deixa a vida mais "aventureira"!

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