domingo, 14 de julho de 2013

Do outro lado da rua...


...aquele maldito despertador mal esperou amanhecer para tocar. Parece que despertadores adivinham quando o sol vai nascer e sabem também qual é o momento exato de interromperem aquele sono gostoso e profundo. Ele esticou o braço, desligou o despertador, virou-se lentamente, espreguiçou demoradamente, sentindo alongar cada músculo de seu tórax, costas e braços, piscou algumas vezes, ainda incrédulo de que o dia já amanhecera sendo que a impressão que ele tinha é que acabara de se deitar. Levantou-se preguiçosamente e foi até o banheiro. Abriu a torneira e deixou que a água fria em seu rosto colhesse o crédito de despertá-lo. Abriu o chuveiro e deixou que a água quente terminasse a árdua tarefa de despertá-lo. 
     Ele ainda se lembrava muito bem daquela rua, pacata, num bairro somente residencial, da casa cor de abóbora, do gramado que nunca chegou a ser um gramado, pois seu cão de estimação nunca deixava que prosperasse. A amoreira já não estava mais lá, havia sido cortada. Dali mesmo, da calçada, ele olhou a janela onde nos últimos dias em que morou ali, debruçava-se sobre o parapeito e ficava observando a quietude, o silêncio, ouvindo os pássaros noturnos, as folhas secas rolando no asfalto, sentindo o vento em seu rosto. A luz tênue e amarelada dos postes de iluminação daquela rua, concediam-lhe uma atmosfera melancólica. solitária. A solidão a dois gritava em seu peito. Nada era pior que ter alguém na vida e ao mesmo tempo sentir-se tão solitário. Ser romântico tem suas desvantagens quando é unilateral. Ele adorava sair para dançar, aliás, adorava levá-la para dançar. Senti-la em seus braços, principalmente quando ela aconchegava a cabeça e roçava o rosto em seu peito enquanto seus braços a estreitavam e apertavam-na contra si. Ele amava a sensação que sentia quando ela se perdia em seus olhos e ele percebia o quanto ela o amava. Mas isso foi no início, durou alguns quatro ou cinco anos. Depois desse período, em algum ponto de suas vidas eles se perderam, distanciaram, criaram abismos entre si. 
     O sempre nem sempre dura a vida toda, mas sim o tempo necessário que tem que durar. Ele lembrou-se do quadro pendurado na parede, que ele ajudou a começar. Lembrou-se de quando fizeram, juntos, aulas de pintura. Ela era um desastre para desenhar - sorriu ao lembrar-se disso - e mal conseguia fazer um círculo razoável. Sua noção de perspectiva era ainda pior, mas tudo isso a tornava mais linda e mais divertida e ele sorria sempre de suas inabilidades e procurava ajudá-la, às vezes até mesmo segurando em sua mão e fazendo o movimento na tela com o pincel para que ela aprendesse. Anteriormente haviam tentado tocar violão, mas ela também se sobressaía na arte do desafino. Por fim, a única musica que ela tentou aprender e ainda assim não conseguiu persiste até hoje em sua memória: "...são três machos e uma fêmea por sinal maria...". Impossível esquecer essa música - sorri - pois ela a repetia todos os dias o mesmo trecho, que nunca aprendeu. Como era divertido. Mas ela era extremamente inteligente, desprovida de dons artísticos é verdade, porém em sua profissão, não havia a quem se comparasse. 
     Ali na rua, parado, olhando aquela casa, ele perguntava a si próprio: por que? qual o motivo? por que as pessoas não valorizam esses detalhes pequenos, por que ela não valorizou tudo isso e muito mais detalhes simples e importantes que tinham em suas vidas? por que deixou-se distanciar tanto assim ao ponto de perder de vista o referencial daquele amor? A sofisticação do simples é encantadora, não é necessário muito  para ser feliz, basta enxergar a beleza em tantos pormenores para os quais, em nosso cotidiano, não valorizamos ou olhamos com desdém. 
     Agora, nessa rua, a essa hora da madrugada, ele já não está mais ali naquela janela, insone, pensativo, mas sim do lado de fora, onde ainda brilham na lembrança as lágrimas que ele derramou ao deixá-la. Se ele fechar os olhos, ainda será capaz de vê-lo voltando para o quarto, onde indiferentemente ela dormia, fechar a janela, cobri-la com aquele cobertor macio, felpudo, que ela adorava, deitar-se ao lado dela e esperar ainda por quase hora até que o sono viesse, geralmente ouvindo sua música (e única) favorita: http://www.youtube.com/watch?v=YuJbij0Vx20  . Do lado de fora, a vida seguia seu rumo e em muitos lugares, haviam milhares de rapazes como ele, passando pelas mesmas dores. E certamente haveriam milhares de mulheres como ela, deitadas, indiferentes, sem se importar com a pessoa amada ao seu lado.
     Mas isso passou, definitivamente sim. Bem... vai passar.

     Ele fechou o chuveiro, secou-se, penteou-se, perfumou-se, sorriu, suspirou profundamente e saiu.

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