sábado, 27 de julho de 2013

Um dia...


(para ouvir enquanto lê) ( http://www.youtube.com/watch?v=i1Zv5N2M6ns ) 
    Ela acordou numa manhã de domingo após mais uma noite dormindo solitária. Sozinha não, solitária, volto a repetir. Acordar é uma força de expressão, pois ela passara a noite acordada, olhando para o teto, para a janela, para a porta. Ao seu lado ele dormia desde as 21:00 da noite anterior, de costas para ela desde que deitou-se embrulhado em um lençol, que tão enrolado estava em seu corpo, não poderia jamais dizer que era um lençol de casal, mas sim de solteiro, haja vista que somente ele usufruiu dele. Onde ficou a parte prática de suas promessas de dormir de conchinha todas as noites?. Tantas promessas ficaram no pretérito... aliás, esse é o tempo verbal de todas as juras que ele fez. Havia um antes e depois tão intenso em sua vida que ela já não conseguia mais distinguir os sonhos das fantasias.
     Antes, ela recebia flores quase todas as semanas, hoje recebe críticas todos os dias.
     Antes, ela ganhava beijos todos os dias antes dele sair para o trabalho, hoje ele apenas pergunta sobre o cardápio do almoço.
     Antes, ela saía para dançar com ele todos os finais de semana, hoje ela valsa com uma almofada, sozinha, na sala de estar.
     Impossível enumerar tantos depressivos "antes" e "depois", recorda ela, com os olhos cheios de lágrimas. O que mudara nela? Sim, só pode ter sido nela, imaginava. Não faltara amor de sua parte nem carinho e muito menos dedicação, pois sempre foi uma companheira presente e leal aos seus compromissos. Ela tenta encontrar uma resposta plausível em filosofias, livros de autoajuda, conversa com suas amigas e no entanto percebe que muitas delas se queixam das mesmas coisas. Era uma transformação dos princípios do amor? ou apenas a vulgarização de um sentimento bastante diferente do que se rotula como amor nos dias atuais? Tantas questões vagavam em seu pensamento. Ela olhou à sua volta, contemplou um antigo retrato sobre o criado mudo que estava ali desde que se conheceram. O que realmente importa? O que realmente faz sentido? continuar ali, fisicamente presente e ignorada por completo?.
     Ela levantou-se, foi até o closet olhou-se no espelho de parede, ajeitou os cabelos. Ela era uma mulher muito bonita, culta, inteligente, independente, autossuficiente, romântica, belíssima à sua maturidade. Afinal, não importa se ela é magrinha, gordinha, alta, baixa, que há de errado nisso? Há tantas divas do passado que em sua maturidade ficaram muito feias ao passo que aquela vizinha anônima, feia em sua juventude,  tornara-se uma linda mulher. Os anos esculpem de forma diferente cada pessoa. Um relacionamento embasado na aparência é um relacionamento que tende ao fracasso, se não observados os aspectos que realmente importam em um romance.
     Ela não era nenhuma Miss Universo, mas também nem em sonho era aquela mocinha linda e cheia de curvas que no entanto fazia estremecer seu  companheiro quando resolvia abrir a boca para falar ou o envergonhava num post de redes sociais quando, no mínimo, trocava o "ç"  por  "ss". Sem dúvida há mulheres lindas, sinuosas e muito cultas, mas não foi isso que ela quis evidenciar em seus apontamentos.       
     Não importa como é seu corpo, se você se admira. Ela se admirava. Tinha consciência de quem era, como era, e isso era o suficiente. Ela o amou apesar de seus defeitos que todo mundo possui, principalmente ele. O primeiro contato de um casal, sem dúvida é o visual, mas não deveria ser o único, pois beleza não se restringe ao aspecto plástico, mas, muito mais, na condução diária de um relacionamento. 
      Então era isso? tudo pelo que ela lutou a vida inteira, era somente isso? viver segundo as vontade dele? passear os passeios dele? viver a vida dele? ela tem a dela. Ela quer sair para dançar, ir ao cinema, viajar, passear de mãos dadas, viver aventuras ao lado dele, sentar-se no tapete da sala, com pipoca e guaraná ao colo, ver um filme, sorrir juntos. Ela quer dormir de conchinha todas as noites, ouvir seu coração pulsar quando deitar-se sobre seu peito, sentir suas mãos afagando seus cabelos e roçando sua pele nua suavemente para que ela adormeça. Ela quer ser acordada com um beijo e um sorriso, abraçada sob os primeiros raios de sol, quer seu café-da-manhã na cama algumas vezes, quer sentir-se cuidada, amada, desejada. Não era pedir muito, seria? são coisas simples, que não custam dinheiro algum, mas sim dedicação, vontade e cumplicidade. 
     Sim, ela seria capaz de recomeçar. Nunca é tarde para recomeçar. Não há príncipe encantado algum lá fora, mas certamente há muitos homens de verdade que enxergam a verdadeira beleza que há em uma mulher, sem se importar com algumas imperfeições na aparência, alguns quilinhos a mais ou a menos, mas que olham primeiro em seus olhos, antes de admirar seu derrière. 
    Ela espreguiçou-se, retocou sua maquiagem, nos lábios seu inseparável batom carmim realçado com seu clip-on, cabelos escovados, alongou seus cílios, conferiu o brilho nos olhos ainda um pouco inchados de chorar e soluçar na madrugada. Ele ainda dormia, enrolado em seu lençol, ainda virado para a parede, de costas para o lugar na cama onde ela dormira, ou melhor, chorara a noite toda. Vestiu seu melhor vestido, calçou suas sandálias, seus anéis, brincos, colar, tirou a aliança da mão esquerda e deixou-a sobre a pia do banheiro.
  Deixou também, na pia do banheiro, suas frustrações, seus desejos não realizados, o amor não correspondido, as promessas não cumpridas, as juras de amor que não foram verdadeiras.  Na mala, que aprontara durante a noite, ela guardou apenas algumas roupas, seus sonhos, as lingeries há anos sem uso, suas boas lembranças e muitos desejos a realizar. 
   Silenciosamente, deixou as chaves de casa sobre a mesa de jantar, fechou a porta às suas costas e foi ser feliz.

2 comentários:

  1. Nossa, eu chorei aqui... A vida dela se pareçe muito com a de uma
    pessoa que conheço. :(

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