terça-feira, 30 de julho de 2013

Naquela noite...

     O relógio preguiçoso marcava 18:00 quando ela, apressada, desligou seu computador, ajeitou os papéis sobre a mesa, abriu a gaveta, guardou as correspondências importantes, abriu a bolsa, tirou um estojo com um espelho, um batom vermelho, olhou-se, retocou o batom, ajeitou os cabelos, levantou-se e foi embora. Naquele dia decidira ir caminhando de volta para casa, uma vez que morava bem próximo ao seu local de trabalho. Era mulher bem-sucedida profissionalmente, excelente formação acadêmica, independente. Caminhava com elegância no patamar de suas sandálias de salto que combinavam com harmonia com sua bolsa. Não gostava de usar muitas jóias, apenas dois anéis e uma pulseira que realçavam suas mãos finas, graciosas e chamavam a atenção para suas unhas de esmalte brilhante e impecável.
     Observava, durante o trajeto, casais de mãos dadas, abraçados, trocando beijos e carícias. Ela esboçou um sorriso e acelerou o passo em direção à sua morada. Cumprimentou o porteiro do prédio, avançou rapidamente para o elevador, onde virou-se de perfil e olhou-se no espelho uma vez mais. Abriu a porta, suspirou profundamente, entrou e fechou a porta à sua retaguarda. Colocou a bolsa e as chaves sobre um aparador que ficava bem ali no hall de entrada. Finalmente estava em casa. Não, ninguém a esperava, sua alegria ao chegar em casa era justamente contrária ás suas expectativas pois morava sozinha e não tinha namorado, noivo, marido, companheiro, o que for. Sua alegria era justamente por chegar em casa e descansar o coração e os olhos das cenas felizes protagonizadas pelos casais transeuntes. Ela não tinha aquilo. 
     Era um apartamento espaçoso, confortável, de paredes claras, cortinas nas janelas, sofás macios, almofadas espalhadas sobre o mesmo, tapetes macios e impecavelmente limpos. Nas paredes, obras do Pernambucano Romero Brito, tentava quebrar a seriedade e a monotonia pigmentar que imperava em seus móveis. Sobre a estante da TV, um retrato seu, sorridente, alegre, feliz, quando tinha apenas 19 anos e sonhava encontrar grande amor, casar-se, ter filhos e que pudessem viver felizes. Mas isso é outra história. Foi até o bar, preparou uma bebida, colocou uma seleção de músicas (sempre a mesma) que costumava ouvir diariamente (a primeira era sempre "Estranha Loucura" de Alcione), tirou as sandálias, sentou-se no sofá, olhou pela vidraça panorâmica da sala de estar, por onde enxergava a noite abraçando a paisagem e pintando de vermelho o horizonte. Mais uma noite.
     Ela não tinha muitos amigos. Os poucos que tentara cultivar aproximavam-se por interesse ou outro motivo qualquer, mas não amizade. Ela no entanto, não pode culpá-los pois sempre foi dedicada ao trabalho e aos estudos, não se importando muito em estabelecer laços de amizades duradouras pois nunca tinha tempo para isso. Furtava-se de convites para ir ao cinema, teatro, passeios, viagens, até o dia em que cansados de convidá-la, foram deixando de fazê-lo. Evidentemente o mesmo acontecia com seus namorados ou pretendentes. Ela não sabia dividir adequadamente seu tempo. Fazia-se esperar. Tinha medo de que suas manias e hábitos fossem incompatíveis com quem quer que viesse a conhecer e estabelecer um relacionamento. Mas seria somente um namoro, não um casamento, tentava ponderar consigo mesma. 
     Seu coração assemelhava-se a um mosaico modernista, brincando em uma montanha russa. Tão retalhado, recortado, sofrendo altos e baixos, perdas e danos, desilusões e mágoas. A música que tocava, ecoava em sua'lma no refrão que mais parecia uma estrofe de sua vida escrita por si mesma "...eu acho que paguei um preço por te amar demais, enquanto pra você foi tanto fez ou tanto faz...". Era isso mesmo, indignava-se toda vez que ouvia essa música. Ela se entregava de corpo e alma enquanto "ele" se esgueirava pelas linhas divisórias do relacionamento, ultrapassando fronteiras aceitáveis e construíndo aquele mosaico no qual seu coração se transformara. Por que a entrega tinha que ser unilateral? seria da natureza masculina ferir, magoar, trair, atirar pela janela toda a felicidade que ela oferecia em troca de um amor honesto e cúmplice?. Era assim que ela, hoje, enxergava os homens que se aproximavam dela, em tentativas inglórias de conquistar aquele coração que mal refratava de maneira translúcida seus amedrontados sentimentos. Ela queria, mas tinha medo. Tinha medo de sofrer novamente, mas esquecia-se de que é a poda da árvore que lhe revitaliza após a mutilação de seus galhos. Não há ninguém igual em todo o mundo, cada ser é um universo circunscrito  em si só, portanto seu grande amor estaria ali, no meio dessa multidão de rostos desconhecidos, aguardando sem saber, a oportunidade de encontrá-la, quem sabe ela já o encontrara, e que pudessem desfrutar de inúmeros momentos felizes. Ela, madura e inteligente, bem sabe que felicidade é um conjunto de momentos felizes, que superam em número e qualidade, os momentos desagradáveis, mas quando esses momentos se tornam raros em um relacionamento, o custo do mesmo é pago com lágrimas, solidão e desesperança, um preço muito alto a se pagar, desconsiderando a si mesma inclusive. Ele a magoara das mais diversas maneiras possíveis, fizera-na sentir-se diminuída como mulher, pouco atraente como fêmea, incompetente como profissional, feia como jamais havia sido, solitária como jamais sonhara ser. Como poderia uma pessoa ter tamanho poder sobre outra ao ponto de transformá-la no que ela jamais foi? De arrancá-la de dentro de si mesma, de sua dignidade e autoconfiança para despojá-la numa persona que jamais lhe pertencera?. Uma lágrima rolara naquele rosto de contornos angulares, delgado, de feições firmes sem no entanto perder a silhueta angelical e peculiar que ora se escondia sob os longos e lisos fios negros que se atiravam até a linha de cintura e em sua franja perfeita, longa e de contorno até o início das têmporas. Se existia uma linda mulher, ela estava ali, sentada, na penumbra de sua sala, sufocada pela noite que já se estendia, secando os olhos, respirando com coriza, sorriso mesclado com um soluço, mentindo a si mesma que tudo estava bem, ao passo que deveria levantar-se, permitir-se viver, cair e levantar-se, pois a vida lhe ensinava todos os dias que recomeçar não era problema e que jamais estariamos caminhando se em nossa pré-infância deixássemos que os tombos que nos dobravam os joelhos nos tirassem o prazer de sorrir e correr para os braços maternos, nem tampouco de esconder-se sob desculpas de que já não era mais tão jovem, pois a juventude está na alma e nunca esteve na pele. Ela seria linda e maravilhosa para alguém... sempre, e vice-versa, não interessava a idade. 
    Mas naquela noite, faltou-lhe coragem de sair de casa sozinha, de enfrentar seus fantasmas, de presentear-se com a oportunidade de responder a um olhar mais atento daquela pessoa que ainda anônimo a observava com atenção e interesse. Naquela noite, faltou-lhe a coragem para ser quem ela realmente era e ter a felicidade que ela realmente merecia. Naquela noite faltou-lhe largar o copo, desligar a TV, vestir-se para a noite que ocultava os segredos dos casais. 
      Naquela noite, ela não retocou seu batom. 

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